Brasil
«(…) Enquanto os
irmãos tinham aulas com o preceptor, Eugénia passeava-se com a escrava Miló, que
tentava entretê-la com as canções que sabia, misturando modinhas conhecidas com
outras, africanas, que cantava, acompanhando-as com o ritmo das suas mãos
batendo uma na outra num movimento largo e lento dos braços. Também lhe contava
histórias de panteras, bandidos e piratas, intercalando-as com algumas mais
tristes, que falavam da caça aos pretos no mato africano, de viagens
infindáveis atafulhados em barcos onde faltava água e comida, mas nunca as
chicotadas ou os ferros com que eram acorrentados. A filha do governador ouvia
atentamente, porque um tremor na voz da sua escrevinha lhe revelava que eram
histórias verdadeiras, e não lendas para distrair crianças. Mesmo assim, achava
as manhãs demasiado longas e, no fim de cada relato, perguntava quanto tempo
faltava para que o preceptor dos irmãos se fosse embora. Ao meio-dia em ponto,
já não continha a impaciência e corria, arrastando Miló atrás de si, para se
juntar aos rapazes num recreio de três horas que sempre lhe parecia demasiado
curto, comparado com as manhãs inteiras dos meses anteriores.
A
Madrinha
Sempre me serviu o dom da ubiquidade, essa arte de me tornar leve ao
ponto de me deixar conduzir por uma brisa suave, que me vinha buscar à hora
marcada com uma pontualidade de andorinha; e não como os ventos fortes, que
abomino, porque só sabem andar com a pressa de uma má notícia. Quase sem dar
por isso, cheguei ao Brasil, onde tinha várias afilhadas a quem fui dar uma
olhadela rápida, pois nesse momento devia intervir na vida de Eugénia, por não
me parecer bem que passasse os dias a vaguear pelos jardins, enquanto os irmãos
estudavam. Porque não havia ela de ser letrada, se recebera a bênção de uma
inteligência igual ou até superior à dos rapazes? Eram tantas as vidas que vira
no mapa dos destinos que as tinha um pouco baralhadas, ou não fosse eu mulher
do meu tempo, pouco dada a geografias, e já não me lembrava bem se era Eugénia
ou Albertina quem iria ter um grande desgosto por causa do pai de um filho seu.
Preferi, então, apostar no celibato, que era a única maneira de impedir
desavenças conjugais. Por isso, juntei à família Meneses uma outra afilhada
minha, uma rapariga órfã que precisava de dar um rumo diferente à sua vida e
endireitar as finanças. Com uma Eugénia culta, sabedora de letras, números e
outras tantas matérias, somadas ao gosto pela liberdade e a uma ponta de rebeldia,
tinha a certeza de que nenhum homem quereria casar-se com ela.
A
Curiosidade de Eugénia
Rodrigo Meneses,
ainda que os deveres da governação o mantivessem sempre ocupado, não deixava de
reparar no aborrecimento da filha quando se aproximava da janela, procurando inspiração
para ditar uma carta ao seu secretário. Via-a atravessar continuamente o jardim
seguida da sua escrava, à procura de alguma coisa com que se entreter durante
as horas em que os irmãos estavam nas aulas. Tinha ouvido falar, já nem sabia
bem ao certo onde e a quem, de um método de ensino imaginado pelo bispo do
Pernambuco, José Azeredo Coutinho. Deu ordens para que averiguassem se não
havia ninguém que pudesse pô-lo em prática com Eugénia, em quem via uma
tendência, rara nas mulheres, para se interessar pelo estudo dos irmãos e nunca
esquecer o que estes lhe explicavam». In Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002,
Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-231-047-3.
Cortesia de OdoLivro/JDACT