quarta-feira, 8 de junho de 2022

O Segredo da Bastarda. Cristina Norton. «Sempre me serviu o dom da ubiquidade, essa arte de me tornar leve ao ponto de me deixar conduzir por uma brisa suave, que me vinha buscar à hora marcada com uma pontualidade de andorinha…»

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Brasil

«(…) Enquanto os irmãos tinham aulas com o preceptor, Eugénia passeava-se com a escrava Miló, que tentava entretê-la com as canções que sabia, misturando modinhas conhecidas com outras, africanas, que cantava, acompanhando-as com o ritmo das suas mãos batendo uma na outra num movimento largo e lento dos braços. Também lhe contava histórias de panteras, bandidos e piratas, intercalando-as com algumas mais tristes, que falavam da caça aos pretos no mato africano, de viagens infindáveis atafulhados em barcos onde faltava água e comida, mas nunca as chicotadas ou os ferros com que eram acorrentados. A filha do governador ouvia atentamente, porque um tremor na voz da sua escrevinha lhe revelava que eram histórias verdadeiras, e não lendas para distrair crianças. Mesmo assim, achava as manhãs demasiado longas e, no fim de cada relato, perguntava quanto tempo faltava para que o preceptor dos irmãos se fosse embora. Ao meio-dia em ponto, já não continha a impaciência e corria, arrastando Miló atrás de si, para se juntar aos rapazes num recreio de três horas que sempre lhe parecia demasiado curto, comparado com as manhãs inteiras dos meses anteriores.

A Madrinha

Sempre me serviu o dom da ubiquidade, essa arte de me tornar leve ao ponto de me deixar conduzir por uma brisa suave, que me vinha buscar à hora marcada com uma pontualidade de andorinha; e não como os ventos fortes, que abomino, porque só sabem andar com a pressa de uma má notícia. Quase sem dar por isso, cheguei ao Brasil, onde tinha várias afilhadas a quem fui dar uma olhadela rápida, pois nesse momento devia intervir na vida de Eugénia, por não me parecer bem que passasse os dias a vaguear pelos jardins, enquanto os irmãos estudavam. Porque não havia ela de ser letrada, se recebera a bênção de uma inteligência igual ou até superior à dos rapazes? Eram tantas as vidas que vira no mapa dos destinos que as tinha um pouco baralhadas, ou não fosse eu mulher do meu tempo, pouco dada a geografias, e já não me lembrava bem se era Eugénia ou Albertina quem iria ter um grande desgosto por causa do pai de um filho seu. Preferi, então, apostar no celibato, que era a única maneira de impedir desavenças conjugais. Por isso, juntei à família Meneses uma outra afilhada minha, uma rapariga órfã que precisava de dar um rumo diferente à sua vida e endireitar as finanças. Com uma Eugénia culta, sabedora de letras, números e outras tantas matérias, somadas ao gosto pela liberdade e a uma ponta de rebeldia, tinha a certeza de que nenhum homem quereria casar-se com ela.

A Curiosidade de Eugénia

Rodrigo Meneses, ainda que os deveres da governação o mantivessem sempre ocupado, não deixava de reparar no aborrecimento da filha quando se aproximava da janela, procurando inspiração para ditar uma carta ao seu secretário. Via-a atravessar continuamente o jardim seguida da sua escrava, à procura de alguma coisa com que se entreter durante as horas em que os irmãos estavam nas aulas. Tinha ouvido falar, já nem sabia bem ao certo onde e a quem, de um método de ensino imaginado pelo bispo do Pernambuco, José Azeredo Coutinho. Deu ordens para que averiguassem se não havia ninguém que pudesse pô-lo em prática com Eugénia, em quem via uma tendência, rara nas mulheres, para se interessar pelo estudo dos irmãos e nunca esquecer o que estes lhe explicavam». In Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-231-047-3.

Cortesia de OdoLivro/JDACT

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