O Sósia
«(…)
O doge cofiou a barba com ar preocupado: Se ele é mesmo o rei de Portugal... Não
pode ser! ... o rei Filipe de Espanha terá de... Senhor!, abespinhou-se o
embaixador. Quereis arranjar conflito entre Veneza e Madrid? Não vejo em que
possa a verdade provocar conflito entre dois estados soberanos e católicos.
Pareceu-me ver nas vossas palavras um tom de ameaça... Não, mas... Mas?,
levantou-se o doge, como a dar por finda a audiência. O que Espanha deseja é
que a Senhoria de Veneza mande prender esse indivíduo que se diz rei de
Portugal e... Senhor embaixador, considerarei o assunto com o meu Conselho dos
Dez e verei o que há que fazer.
Marco
Túlio correu esbaforido para o cais e embarcou numa gôndola: Depressa,
depressa, San Beneto! A gôndola afasta-se a toda a pressa. Em San Beneto, em
casa de Jerónimo Migliori, Pantaleão Pessoa, frei Crisóstomo, António Brito
Pimentel e Nuno Costa conversavam com frei Estêvão Sampaio recém-chegado de Paris.
Era frei Estêvão um dominicano de grande prestígio. As obras que eu escrevi?,
encolhia os ombros aos que o elogiavam pelas inúmeras vidas de santos e varões
ilustres da sua ordem, que publicara em Paris e incorporara no seu Thesaurus.
Também se não envaidecia do talento e saber que todos lhe reconheciam, do
renome de grande latinista... Os meus pergaminhos são outros, o ter tido o meu
berço em Guimarães, ser afeiçoado à casa de Vimioso e, por ter sido partidário
do senhor Dom António, terem-me encarcerado os Castelhanos. E a vossa fuga, frei
Estêvão? Sabeis o que é descer uma muralha altíssima pendurado de um lençol que
a todo o momento ameaça romper-se e precipitar um desgraçado no abismo? E
recordava o exílio em França, em Tolosa, a universidade, o doutoramento em
teologia, a amizade com Carlos IX e Henrique III, reis de França, e com o seu
capelão, o bispo de Angers, a quem dedicara o Thesaurus... Mas agora... Mal soube
da novidade, meti-me a caminho. Dom João Castro, neto do grande vice-rei da
Índia, dom Jerónimo Portugal e o padre
José Teixeira pediram-me muito empenhados lhes escrevesse logo que veja esse
rei ressuscitado. Onde está ele? De visita ao arcebispo de Espálato, que muito
o tem ajudado junto do papa. Chegará em breve. Estou ansioso, ficai sabendo,
por beijar a mão ao meu rei.
No
estreito rio a gôndola atraca à soleira de uma porta. Marco Túlio salta da
embarcação para o degrau de pedra e entra estugado na casa e na sala onde estão
os portugueses: Senhores, el-rei foi preso. Que dizeis? Estávamos em casa do
arcebispo quando chegaram os guardas, de mando do Conselho dos Dez, e o levaram
preso. Meu Deus!, disse Nuno Costa. E agora?» In Fernando Campos, A Ponte dos
suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
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