segunda-feira, 6 de junho de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. « Ergui os olhos da leitura. Era Nuno Costa, que, sorridente, ali estava de pé junto da minha estante, iluminado pelo colorido coado dos losangos do vitral»

jdact

O Sósia

«(…) Pede-lhe que suba. É amigo que muito importa guardar. Túlio subiu. Fez-me uma vénia rasgada, jovial: Meu Senhor. Túlio! Deixastes crescer a barba e talhaste-la da mesma feição... Não fosse o vestuário, a voz, o parco conhecimento da língua portuguesa, dir-se-ia ser meu sósia. Sentámo-nos a um canto a conversar: deu-me conta da missão de que eu o havia incumbido, das dificuldades em encontrar os senhores a quem eram endereçadas as cartas, os perigos corridos, Lisboa e o reino enxameados de espiões castelhanos, as forcas sempre a baloiçarem portugueses resistentes à ocupação estrangeira... Daí a pouco já estavam os dois a falar de assuntos que só eles conheciam. Estava em cuidados com a vossa demora. A falta de notícias vossas..., a vossa mulher em cuidados..., escreveu-me a saber de vós...

Missão difícil, como vedes. Eu tinha avisado minha mulher e minha filha dos perigos que ia correr... Escrevi-lhe a sossegá-la..., e a frei Raimundo que procurasse novas de vós... Já a fostes ver? Já. Não recebeu carta vossa. Não? ... e Frei Raimundo também não... Ela estava até magoada convosco, que não lhe respondíeis... Ter-se-ão perdido as cartas? Que se terá passado? Essa mesma tarde, depois do jantar, partimos para Veneza. Túlio acompanhou-me, como meu criado e pajem. Montado num cavalo baio, que toda a companhia viajava em montadas dignas e alguns dos companheiros iam armados, para prevenir assaltos de encruzilhadas, desfiladeiros e florestas, já me dava eu ares, como antigamente. Porque será sina minha cair sempre no sonho, que já tanto mal atrás havia causado?... Apartava-me da crueza da vida com a mesma ingenuidade dos anos imaturos? Não me servira de nada a experiência?... A loucura voltava?... E no entanto, ali, à minha volta, rondava e tomava corpo pior desventura ainda que as anteriores... Que livro estais a ler, meu Senhor?

Ergui os olhos da leitura. Era Nuno Costa, que, sorridente, ali estava de pé junto da minha estante, iluminado pelo colorido coado dos losangos do vitral. Havia entrado com frei Crisóstomo, com Pantaleão Pessoa e António Pimentel. À porta assomava também a figura de Marco Túlio. Nas longas horas deste esperar por que se me resolva o destino, gosto de me isolar no silêncio de um livro. Não, não. Não mais leituras piedosas, vidas de heróis e de santos, especulações teológicas, arquimanhas visionárias de falsos profetas... Coisas concretas, práticas, do que vai sendo o fado das nações, dos impérios, dos principados... Consegui dos meus companheiros um exemplar do De regis institutione do meu sábio bispo Jerónimo Osório e agora... Il Principe, mostro-lhe a capa.

Ah! Nicolau Bernardo Maquiavel! Uma espada de dois gumes. Vejo que o conheceis. Nenhum homem que se preze de querer entender, nestes difíceis tempos, o que se passa no mundo deve ignorar esta obra. O rei e o cortesão, o clérigo, o humanista... ... e também o conspirador, não esqueçais, atalhei. Por isso, Alteza, e por muitas outras razões, afirmei que este livro é espada de dois gumes. Levantei-me do assento a deslassar os membros e abri a porta envidraçada que dava para um pequeno jardim. No Grande Canal passavam gôndolas junto dos Grimani, metiam algumas pelo estreito rio di San Luca. Saí ao pátio. Veio-me na cola Nuno Costa. Logo me rodeava a multidão de pombos a que eu gostava de vir dar migalhas e sementes. Já vos conhecem, Senhor. Pousavam-me nos ombros, no coruto da cabeça, esvoaçavam a debicar-me nas palmas das mãos... Amigos assim, reatava eu a conversa, podem ser interesseiros, move-os sem dúvida a pensão de comer, mas não como alguns de que fala esse livro... Quereis referir...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,