O Sósia
«(…)
Pede-lhe que suba. É amigo que muito importa guardar. Túlio subiu. Fez-me uma
vénia rasgada, jovial: Meu Senhor. Túlio! Deixastes crescer a barba e
talhaste-la da mesma feição... Não fosse o vestuário, a voz, o parco
conhecimento da língua portuguesa, dir-se-ia ser meu sósia. Sentámo-nos a um
canto a conversar: deu-me conta da missão de que eu o havia incumbido, das
dificuldades em encontrar os senhores a quem eram endereçadas as cartas, os
perigos corridos, Lisboa e o reino enxameados de espiões castelhanos, as forcas
sempre a baloiçarem portugueses resistentes à ocupação estrangeira... Daí a
pouco já estavam os dois a falar de assuntos que só eles conheciam. Estava em
cuidados com a vossa demora. A falta de notícias vossas..., a vossa mulher em
cuidados..., escreveu-me a saber de vós...
Missão
difícil, como vedes. Eu tinha avisado minha mulher e minha filha dos perigos
que ia correr... Escrevi-lhe a sossegá-la..., e a frei Raimundo que procurasse novas
de vós... Já a fostes ver? Já. Não recebeu carta vossa. Não? ... e Frei
Raimundo também não... Ela estava até magoada convosco, que não lhe
respondíeis... Ter-se-ão perdido as cartas? Que se terá passado? Essa mesma
tarde, depois do jantar, partimos para Veneza. Túlio acompanhou-me, como meu
criado e pajem. Montado num cavalo baio, que toda a companhia viajava em
montadas dignas e alguns dos companheiros iam armados, para prevenir assaltos
de encruzilhadas, desfiladeiros e florestas, já me dava eu ares, como
antigamente. Porque será sina minha cair sempre no sonho, que já tanto mal
atrás havia causado?... Apartava-me da crueza da vida com a mesma ingenuidade
dos anos imaturos? Não me servira de nada a experiência?... A loucura
voltava?... E no entanto, ali, à minha volta, rondava e tomava corpo pior desventura
ainda que as anteriores... Que livro estais a ler, meu Senhor?
Ergui
os olhos da leitura. Era Nuno Costa, que, sorridente, ali estava de pé junto da
minha estante, iluminado pelo colorido coado dos losangos do vitral. Havia
entrado com frei Crisóstomo, com Pantaleão Pessoa e António Pimentel. À porta
assomava também a figura de Marco Túlio. Nas longas horas deste esperar por que
se me resolva o destino, gosto de me isolar no silêncio de um livro. Não, não.
Não mais leituras piedosas, vidas de heróis e de santos, especulações teológicas,
arquimanhas visionárias de falsos profetas... Coisas concretas, práticas, do
que vai sendo o fado das nações, dos impérios, dos principados... Consegui dos
meus companheiros um exemplar do De regis institutione do meu sábio bispo
Jerónimo Osório e agora... Il Principe, mostro-lhe a capa.
Ah!
Nicolau Bernardo Maquiavel! Uma espada de dois gumes. Vejo que o conheceis. Nenhum
homem que se preze de querer entender, nestes difíceis tempos, o que se passa
no mundo deve ignorar esta obra. O rei e o cortesão, o clérigo, o humanista... ...
e também o conspirador, não esqueçais, atalhei. Por isso, Alteza, e por muitas
outras razões, afirmei que este livro é espada de dois gumes. Levantei-me do
assento a deslassar os membros e abri a porta envidraçada que dava para um
pequeno jardim. No Grande Canal passavam gôndolas junto dos Grimani, metiam
algumas pelo estreito rio di San Luca. Saí ao pátio. Veio-me na cola Nuno Costa.
Logo me rodeava a multidão de pombos a que eu gostava de vir dar migalhas e
sementes. Já vos conhecem, Senhor. Pousavam-me nos ombros, no coruto da cabeça,
esvoaçavam a debicar-me nas palmas das mãos... Amigos assim, reatava eu a
conversa, podem ser interesseiros, move-os sem dúvida a pensão de comer, mas
não como alguns de que fala esse livro... Quereis referir...» In
Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN
978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,