A Tempestade
«(…) Há aqui também um castelo
inexpugnável, com guarnição permanente, e um mosteiro de franciscanos que,
embora gregos de nação, estão sujeitos à Igreja Romana. Sejais bem-vindos! Sede
bem-vindos! Venhais em boa hora! Eram os frades a acolherem-nos com muito amor
e caridade. Primeiro tratar da alma! E levavam-nos à capela a rezar. Depois
cuidar do corpo, e seguia-se a visita sacramental à copa. Toda a gente nobre da
ilha frequenta este mosteiro e aqui se enterra. As mais igrejas fazem ao modo
grego e têm o seu bispo ortodoxo. Os Venezianos pagam cada ano de tributo aos
Turcos por esta ilha e pela de Cefalónia certa quantidade de falcões, mas nem
por isso deixam de ter guarda de gente de pé e de cavalo, por causa dos corsários
turcos e mouros que infestam aqueles mares. Bons vinhos e azeites, muita passa,
formosura de frutas, tal como por todas estas paragens mediterrânicas, mas com
tanta abundância a terra quase toda é enfermiça de clima e de ares. Já quase
noite nos tornámos à nau. Encontrei-me com Pérides, que regressava também, com
ar radiante, vestindo uma camisola de lã que não lhe tinha visto de manhã
quando saímos.
Então, amigo Pérides, lhe
perguntei eu, a vossa namorada é daqui ou de Cefalónia? Esta é Crísida,
respondeu ele com uma simplicidade e inocência estudada, a outra era Melânia. Ah!
Compreendo! Coleccionais..., camisolas!... Prosseguindo nossa rota, no dia seguinte
pela manhã costeamos a Moreia, de muitos chamada Negroponto e de outros
Peloponeso, e passamos junto das duas pequenas ilhas Estrivais, onde estão como
em deserto alguns calouros gregos que vivem de esmolas. Nos seus barcos as vão
pedir às ilhas vizinhas e têm uma torre onde se recolhem quando sentem galés ou
fustas de corsários. À hora de véspera, sobreveio-nos vento contrário, de tal
modo que se nos tornou urgente tomar porto, que necessariamente havia de ser
turco, queria dizer de inimigos. O patrão da nau e os marinheiros, que do porto
tinham notícia e conheciam o género da gente, mostravam-se muito apreensivos, o
que não nos escapou a mim e a frei Zedilho. Estamos em apuros?, pergunto a
Pérides, já o barco entrava no porto e se preparava para lançar âncora. Olha-nos
muito sério e diz: É boa altura de rezardes com todas as veras e ganas da vossa
piedade! Ai, meu Deus!, entra frei Zedilho de empalidecer, ajoelhando logo ali
e sacando das suas camândulas. Mas antes que a âncora fosse lançada o vento
virou o rumo que trazíamos e, dando grandes gargalhadas nas velas pandas,
assobiou pelas enxárcias que não ganháramos para o susto.
Navegando sempre ao longo da
Moreia, aí estava o mar Jónio, que outros chamam Egeu e também já se chamou
Icário. Quantas reminiscências de leituras, de estudos, tanto de autores
gentios como de cristãos, aquelas terras, aquelas ilhas, aquele mar me traziam
ao espírito! Quanta fábula e quanta história contida neste grande anfiteatro
que são as terras dispostas em semicírculo em roda desse mar! Polvilhado de
pequenas ilhas que arremedam poldras a manter a ligação humana da raça, da
língua, das crenças e costumes, essa líquida orquestra de prata e ouro é rematada pelo palco
magnífico, por esse estirado proscénio que é a ilha de Cindia, de costas
voltadas a esse outro mundo ignoto e misterioso, a África. Onde estão os deuses
e as deusas que povoaram essas montanhas azuladas? Onde as dríades e os faunos
que corriam e dançavam nas clareiras dos bosques amenos, as náiades que riam e
se banhavam nas fontes murmurantes, nos rios e lagos sonoros e cristalinos, à
sombra da oliveira cor de cinza ou dos choupos mimosos? Onde as ninfas e as
nereides? As musas que inspiraram tão grandes poetas? Os heróis que amaram e
sofreram e foram cantados ao som de cítara de sete cordas nos palácios reais
por um aedo cego? Já não vibra este ar finíssimo com as melopeias da lira de
Orfeu, nem em redor da tímele o coro ditirâmbico evoca o suplício de Dioniso,
nem o deus, embriagado e frenético, executa, ao som de flautas e crótalos, uma
dança orgiástica, acompanhado de bacantes enlouquecidas e de sátiros obscenos,
coroados de folhas, segurando mirtos, lambuzando-se e salpicando-se de vinho
vermelho como sangue... Na velha Corinto, no rico templo de Vénus, já não se
ouvem os suspiros, a respiração ofegante, das mil jovens que saciam a luxúria
dos ricos viajantes e mercadores». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel,
1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita,