A Tempestade
«(…) Entrei. Começava a perceber
que o livro não era mais do que uma senha. Mal a judia fechou a porta, a sua
atitude mudou totalmente. Sorrindo amavelmente, rogou-me que me sentasse, foi
buscar biscoitos. Não se incomodasse comigo!, passas, figos, queijo, serviu-me
do seu vinho, Ora valha-me Deus, que maçada lhe estava a dar!, enquanto ia
falando. Que pena Isac não poder estar, ele que tanto me queria ver e falar!
Mas tivera de ir à pressa a Chipre e daí ao Líbano, a colher umas informações
especiais que Jacob, vindo das índias e passando por Ormuz, lhe queria
transmitir. Jacob?, estranhei eu. Será
esse Jacob... Português, médico de Tavira. Esse mesmo!
Mas ele..., tinha morrido no
terremoto! Assim era necessário que toda a gente pensasse, como depois se
vira... Aliás era em parte isso que Isac me queria anunciar da parte de Jacob:
que ele estava vivo e residia com Sara em Damasco. Sentindo-se velho e doente,
não queria morrer sem me falar, para desobrigar sua alma de um pesado fardo que
tem suportado. Isac pensava levar-me até ele, mas agora que tivera de
ausentar-se subitamente deixara recado que me procuraria em Chipre, ou em Jerusalém,
ou noutro qualquer lugar. Não devia preocupar-me: ele havia de encontrar-me...
Estivemos três dias naquela
cidade, por ser necessário proceder à descarga de mercadorias que ali se
venderam e à carga de outras que se compraram, o que não me pesou porque o meu
espírito, deslassado de tanta espera infrutífera, caiu numa espécie de apatia e
indiferença cansada, que eu sabia momentânea. Aproveitei o facto para
satisfazer o meu natural pendor de desejar ver terras, ritos e costumes
estranhos. Pude assim conhecer melhor a grande fertilidade de Corfu em muitos
estremados azeites e vinhos, de que fazem exportação para diversas partes, a
riqueza do gado que lhe dá pingues carnes, a bondade e variedade das frutas, em
especial a fruta de espinho, mais avantajada que a nossa, e a abundância de
pescado, não obstante o mar de Levante ser em muito lado falto dele. Visitei
até uma grande pesqueira, a modo de viveiro, que os Venezianos têm num
determinado ponto do estreito, em terra de turcos, onde criam infinito peixe que
rende à senhoria grossa maquia: a maior parte são tainhas, que não é bom peixe
por estar retido naquele viveiro à mistura com cobras e outras imundícies, mas
há muita gente que o aprecia. O principal dele são as ovas, de que os Gregos e
os Italianos fazem mais conta: extraem-nas e põem-nas a secar e a curar ao sol.
São muito estimadas em todo o Levante e inúmeros mercadores vêm comprar o pescado
e, tiradas as ovas, a que chamam butargas, dão-no livremente a quem o quer.
Muitas pessoas o comem escalado e posto a enxugar, condimentado de alho, mas outras
não lhe fazem tantas cerimónias.
Negociadas em Corfu todas as
coisas necessárias e oferecendo-se-nos tempo próspero e bom para navegar,
levantamos âncora e demos vela com muito contentamento de todos. No dia
seguinte passamos a ilha de Cefalónia, suas altas montanhas a precipitarem-se
vertiginosamente no mar. Preciosos vinhos!, era o nosso habitual informador,
Pérides, apoiado como eu e meu companheiro à borda da balaustrada. Os ilhéus dedicam-se
a fazer muita passa que levam à Itália e a outras terras Têm grande cópia de
gado e lãs finíssimas... Estava particularmente feliz o bom do Pérides, pois
mal fundeássemos iria a correr ver a sua namorada que era dali. Ia dar-lhe milhões
de beijos e provar uma camisola que ela lhe andava a fazer (Margarida também me
fez uma, lembrei-me!) com a lã das suas ovelhas! Era ver-lhe os olhos alongados
a quererem puxar a si a terra que não havia meio de se aproximar. Era evidente
que estávamos a passar de largo. A
desolação e mágoa de Pérides foi indescritível. Saiu da nossa beira e até ao
dia seguinte, que aportamos à ilha de Zanze, não lhe pusemos a vista em cima.
Aqui pouca gente saiu a terra: apenas o escrivão da nau, dois ou três mercadores,
eu, depois de ter pedido licença ao patrão para satisfazer minha pura
curiosidade..., e Pérides!» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel,
1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT