O
Semão aos Peixes
«(…) Em quinhentos anos ninguém
se lembrou de mandar picar ou desmontar a insolência, prova inesperada de que o
português não é alheio ao humor, salvo se só o entende quando lhe serve os
patriotismos. Não se aprendeu aqui com a fraternidade dos peixes do Douro, mas
talvez haja boas razões para isso. Afinal, se as potências celestiais
favoreceram um dia os Portugueses contra os Espanhóis, mal parecia que os
humanos deste lado passassem por cima das intervenções do alto e as desautorizassem.
O caso conta-se brevemente.
Andavam
acesas as lutas da Restauração, meados portanto do século XVII, e Miranda do
Douro, aqui à beirinha do Douro, estava, por assim dizer, a um salto duma pulga
de acometidas do inimigo. Havia cerco, a fome já era muita, os sitiados
desanimavam, enfim, estava Miranda perdida. Eis senão quando, isto é o que se
diz, avança ali um garoto a gritar às armas, a incutir ânimo e coragem onde
coragem e ânimo estavam desfalecendo, e de tal maneira que em dois tempos se
levantaram todas aquelas debilidades, tomam armas verdadeiras e inventadas, e
atrás do infante vão-se aos Espanhóis como se malhassem em centeio verde. São
desbaratados os sitiantes, triunfa Miranda do Douro, escreveu-se outra página
nos anais da guerra. Porém, onde está o chefe deste exército? Onde está o
gentil combatente que trocou o pião pelo bastão de marechal de campo? Não está,
não se encontra, ninguém o viu mais. Logo, foi milagre, dizem os mirandeses.
Logo, foi o Menino Jesus. O viajante confirma. Se foi capaz de falar aos peixes
e eles capazes de o ouvirem, não tem agora nenhum motivo para desconfiar das
antigas estratégias. Tanto mais que aqui está ele, o Menino Jesus da
Cartolinha, com a sua altura de dois palmos, à cinta a espada de prata, a faixa
vermelha atravessando do ombro para o lado, laço branco ao pescoço, e a cartola
no alto da sua redonda cabeça de criança. Este não é o fato da vitória, apenas um
do seu confortável guarda-roupa, completo e constantemente posto em dia, como
ao viajante está mostrando o sacristão da Sé. É sabedor do seu mister de guia
este sacristão, e, porque dá tento da minuciosa atenção do viajante, leva-o a
uma dependência lateral onde tem recolhidas diversas peças de estatuária,
defendendo-as assim das tentações dos gatunos de ofício e ocasião. Aí se
confirmam as coisas. Uma pequena tábua, esculpida em alto-relevo, acaba de
convencer o viajante da sua própria incipiência em matéria de milagres. Eis
Santo António recebendo genuflexão duma ovelha, que assim está dando exemplar
lição de fé ao pastor descrente que se tinha rido do santo e ali, na escultura,
evidentemente, se mostra corrido de vergonha e por isso talvez ainda merecedor
de salvação. Diz o sacristão que muita gente fala desta tábua, mas que poucos a
conhecem. Escusado será dizer que o viajante não cabe em si de vaidade. Veio de
tão longe, sem empenhos, e só por ter cara de boa pessoa o admitiram ao
conhecimento destes segredos. Esta viagem vai no princípio, e sendo o viajante
escrupuloso como é, aqui lhe morde o primeiro sobressalto. Afinal, que viajar é
este? Dar uma volta por esta cidade de Miranda do Douro, por esta Sé, por este
sacristão, por esta cartolinha e esta ovelha, e, isto feito, marcar uma cruz no
mapa, meter rodas à estrada, e dizer, como o barbeiro enquanto sacode a toalha:
O senhor que se segue». In José Saramago, Viagem a Portugal,
1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,