De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
O
Semão aos Peixes
«(…) Viajar deveria ser outro
concerto, estar mais e andar menos, talvez até se devesse instituir a profissão
de viajante, só para gente de muita vocação, muito se engana quem julgar que
seria trabalho de pequena responsabilidade, cada quilómetro não vale menos que
um ano de vida. Lutando com estas filosofias, acaba o viajante por adormecer, e
quando de manhã acorda lá esta a pedra amarela, é o destino das pedras, sempre
no mesmo sítio, salvo se vem o pintor e a leva no coração. À saída de Miranda
do Douro, vai o viajante aguçando a observação para que nada se perca ou alguma
coisa se aproveite, e por isso é que reparou num pequeno rio que por aqui
passa. Ora, os rios têm nomes, e este, tão perto de se juntar ao encorpado
Douro, como lhe terão chamado? Quem não sabe, pergunta, e quem pergunta, tem às
vezes resposta: Ó senhor, como se chama este rio? Este rio chama-se Fresno.
Fresno? Sim senhor, Fresno. Mas fresno é palavra espanhola, quer dizer freixo.
Por que é que não dizem rio
Freixo? Ah, isso não sei. Sempre assim lhe ouvi chamar. No fim das contas,
tanta luta contra os Espanhóis, tantas más-criações nas fronteiras das casas,
até ajudas do Menino Jesus, e aqui está este Fresno, dissimulado entre margens
gostosas, a rir-se do patriotismo do viajante. Lembra-se ele dos peixes, do
sermão que lhes fez, distrai-se um pouco nessa recordação, e já está perto da
aldeia de Malhadas quando se lhe acende o espírito: Quem sabe se fresno não
será também uma palavra do dialecto mirandês? Leva ideia de fazer a pergunta,
mas depois esquece-se, e quando muito mais tarde torna à sua dúvida, decide que
o caso não tem importância. Ao menos para o seu uso, passou fresno a ser
português.
Malhadas fica a deslado da
estrada principal, desta que se segue para Bragança. Aqui perto há restos de
uma via romana que o viajante não vai procurar. Mas quando dela fala a um
lavrador e a uma lavradeira que encontra à entrada da aldeia, respondem-lhe: Ah,
isso é a estrada mourisca. Pois seja a estrada mourisca. Agora, aquilo que
o viajante quer saber é o porquê e o como deste tractor donde o lavrador desce
com o à vontade de quem usa coisa sua. Tenho pouca terra, só para mim não
daria. Mas alugo-o de vez em quando aos vizinhos, e assim vamos vivendo. Ficam
os três ali de conversa, falando das dificuldades de quem tem filhos a sustentar,
e é patente que está outro para breve. Quando o viajante diz que vai até
Vimioso e depois tornará a passar por ali, a lavradeira, sem ter de pedir
licença ao marido, convida: Nós moramos nesta casa, almoça com a gente, e bem
se vê que é de vontade, que o pouco ou o muito que estiver na panela seria dividido
em partes desiguais, porque é mais do que certo que o viajante teria no seu
prato a parte melhor e maior. O viajante agradece muito e diz que ficará para
outro dia. Afasta-se o tractor, recolhe a mulher a casa: São uns palheiros,
tinha ela dito, e o viajante dá uma volta pela aldeia, mal chega a dá-la,
porque de súbito surge-lhe pela frente uma gigantesca tartaruga negra, é a
igreja do lugar, de grossíssimas paredes, uns enormes botaréus de reforço que
são as patas do animal. No século XIII, e nestas bandas de Trás-os-Montes, não
se saberia muito de resistência de materiais, ou então o construtor era homem
desconfiado das seguranças do mundo e resolveu edificar para a eternidade. O
viajante entrou e viu, foi ao campanário e ao telhado e dali passeou os olhos
em redor, um pouco intrigado com uma terra transmontana que não se descai nos
vales e precipícios abruptos que a imaginação lhe preparara. Enfim, cada coisa
a seu tempo, isto é um planalto, não deve o viajante ralhar com a sua fantasia tanto
mais que ela o serviu quando fez da igreja tartaruga, só lá indo se saberá como
é justa e rigorosa a comparação. Duas léguas adiante está Caçarelhos. Aqui diz
Camilo que nasceu o seu Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado
de Agra de Freimas, herói patego e patusco da Queda Dum Anjo, novela de muito riso e alguma
melancolia.
Considera
o viajante que o dito Camilo não escapa à censura que acidamente desferiu
contra Francisco Manuel do Nascimento, acusado este de galhofar com a Samardã,
como antes outros tinham chalaceado com Maçãs de D. Maria, Ranhados ou
Cucujães. Juntando Elói a Caçarelhos tornou Caçarelhos risível, ou será isto
defeito do nosso espírito, como se tivéssemos de acreditar ser a culpa das
terras e não de quem nelas nasce. A maçã é bichosa por doença da macieira, e
não por maldade do torrão. Fique então dito que esta aldeia não sofre de pior
maleita que a distância, aqui nestes cabos do mundo, nem provavelmente tem o
seu nome que ver com o que no Minho se diz: caçarelho é fulano tagarela,
incapaz de guardar um segredo. Há-de ter Caçarelhos os seus: ao viajante
ninguém lhos contou, quando atravessava o campo da feira, que hoje é dia de
vender e comprar gado, estes belos bois cor de mel, olhos que são como
salvadoras bóias de ternura, e os beiços brancos de neve, ruminando em paz e
serenidade, enquanto um fio de baba devagar escorre, tudo isto debaixo duma
floresta de liras, que são as córneas armações, caixas-de-ressonância naturais
do mugido que, uma vez por outra, se ergue do ajuntamento. Certamente há nisto
segredos, mas não daqueles que as palavras podem contar. Mais fácil é contar
dinheiro, tantas notas por este boi, leve lá o animal, que vai muito bem
servido». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora,
Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,