terça-feira, 25 de outubro de 2022

Viagem a Portugal. José Saramago. «Mais fácil é contar dinheiro, tantas notas por este boi, leve lá o animal, que vai muito bem servido»

 

jdact e cortesia de wikipedia

De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

O Semão aos Peixes

«(…) Viajar deveria ser outro concerto, estar mais e andar menos, talvez até se devesse instituir a profissão de viajante, só para gente de muita vocação, muito se engana quem julgar que seria trabalho de pequena responsabilidade, cada quilómetro não vale menos que um ano de vida. Lutando com estas filosofias, acaba o viajante por adormecer, e quando de manhã acorda lá esta a pedra amarela, é o destino das pedras, sempre no mesmo sítio, salvo se vem o pintor e a leva no coração. À saída de Miranda do Douro, vai o viajante aguçando a observação para que nada se perca ou alguma coisa se aproveite, e por isso é que reparou num pequeno rio que por aqui passa. Ora, os rios têm nomes, e este, tão perto de se juntar ao encorpado Douro, como lhe terão chamado? Quem não sabe, pergunta, e quem pergunta, tem às vezes resposta: Ó senhor, como se chama este rio? Este rio chama-se Fresno. Fresno? Sim senhor, Fresno. Mas fresno é palavra espanhola, quer dizer freixo.

Por que é que não dizem rio Freixo? Ah, isso não sei. Sempre assim lhe ouvi chamar. No fim das contas, tanta luta contra os Espanhóis, tantas más-criações nas fronteiras das casas, até ajudas do Menino Jesus, e aqui está este Fresno, dissimulado entre margens gostosas, a rir-se do patriotismo do viajante. Lembra-se ele dos peixes, do sermão que lhes fez, distrai-se um pouco nessa recordação, e já está perto da aldeia de Malhadas quando se lhe acende o espírito: Quem sabe se fresno não será também uma palavra do dialecto mirandês? Leva ideia de fazer a pergunta, mas depois esquece-se, e quando muito mais tarde torna à sua dúvida, decide que o caso não tem importância. Ao menos para o seu uso, passou fresno a ser português.

Malhadas fica a deslado da estrada principal, desta que se segue para Bragança. Aqui perto há restos de uma via romana que o viajante não vai procurar. Mas quando dela fala a um lavrador e a uma lavradeira que encontra à entrada da aldeia, respondem-lhe: Ah, isso é a estrada mourisca. Pois seja a estrada mourisca. Agora, aquilo que o viajante quer saber é o porquê e o como deste tractor donde o lavrador desce com o à vontade de quem usa coisa sua. Tenho pouca terra, só para mim não daria. Mas alugo-o de vez em quando aos vizinhos, e assim vamos vivendo. Ficam os três ali de conversa, falando das dificuldades de quem tem filhos a sustentar, e é patente que está outro para breve. Quando o viajante diz que vai até Vimioso e depois tornará a passar por ali, a lavradeira, sem ter de pedir licença ao marido, convida: Nós moramos nesta casa, almoça com a gente, e bem se vê que é de vontade, que o pouco ou o muito que estiver na panela seria dividido em partes desiguais, porque é mais do que certo que o viajante teria no seu prato a parte melhor e maior. O viajante agradece muito e diz que ficará para outro dia. Afasta-se o tractor, recolhe a mulher a casa: São uns palheiros, tinha ela dito, e o viajante dá uma volta pela aldeia, mal chega a dá-la, porque de súbito surge-lhe pela frente uma gigantesca tartaruga negra, é a igreja do lugar, de grossíssimas paredes, uns enormes botaréus de reforço que são as patas do animal. No século XIII, e nestas bandas de Trás-os-Montes, não se saberia muito de resistência de materiais, ou então o construtor era homem desconfiado das seguranças do mundo e resolveu edificar para a eternidade. O viajante entrou e viu, foi ao campanário e ao telhado e dali passeou os olhos em redor, um pouco intrigado com uma terra transmontana que não se descai nos vales e precipícios abruptos que a imaginação lhe preparara. Enfim, cada coisa a seu tempo, isto é um planalto, não deve o viajante ralhar com a sua fantasia tanto mais que ela o serviu quando fez da igreja tartaruga, só lá indo se saberá como é justa e rigorosa a comparação. Duas léguas adiante está Caçarelhos. Aqui diz Camilo que nasceu o seu Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado de Agra de Freimas, herói patego e patusco da Queda Dum Anjo, novela de muito riso e alguma melancolia.

Considera o viajante que o dito Camilo não escapa à censura que acidamente desferiu contra Francisco Manuel do Nascimento, acusado este de galhofar com a Samardã, como antes outros tinham chalaceado com Maçãs de D. Maria, Ranhados ou Cucujães. Juntando Elói a Caçarelhos tornou Caçarelhos risível, ou será isto defeito do nosso espírito, como se tivéssemos de acreditar ser a culpa das terras e não de quem nelas nasce. A maçã é bichosa por doença da macieira, e não por maldade do torrão. Fique então dito que esta aldeia não sofre de pior maleita que a distância, aqui nestes cabos do mundo, nem provavelmente tem o seu nome que ver com o que no Minho se diz: caçarelho é fulano tagarela, incapaz de guardar um segredo. Há-de ter Caçarelhos os seus: ao viajante ninguém lhos contou, quando atravessava o campo da feira, que hoje é dia de vender e comprar gado, estes belos bois cor de mel, olhos que são como salvadoras bóias de ternura, e os beiços brancos de neve, ruminando em paz e serenidade, enquanto um fio de baba devagar escorre, tudo isto debaixo duma floresta de liras, que são as córneas armações, caixas-de-ressonância naturais do mugido que, uma vez por outra, se ergue do ajuntamento. Certamente há nisto segredos, mas não daqueles que as palavras podem contar. Mais fácil é contar dinheiro, tantas notas por este boi, leve lá o animal, que vai muito bem servido». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,