«(…) Nunca devia ter tirado o chapéu da cabeça para que se soubesse quem era o patrão e o advogado do vértice dos cheviotes sem entender Como?, o advogado parecido com os advogados, os banqueiros, os gestores, os deputados e os ministros que chegavam à quinta no tempo do meu pai, invisíveis nos vidros opacos de um cortejo de automóveis fúnebres avançando pelo caminho de ciprestes que separava o portão da casa, me faziam uma festa distraída no queixo comentando sem me verem Como tu cresceste se fechavam na sala do piano a tarde inteira com as criadas de luvas brancas num corrupio de bandejas, a governanta a mandar-me brincar para as traseiras, o caseiro a afugentar os corvos e a calar os cães, os advogados, os banqueiros, os gestores, os deputados e os ministros que regressavam já de noite aos seus carros imensos, desapareciam na estrada de Lisboa e o meu pai esquecido deles, voltado para a respiração do pântano onde as últimas rolas se sumiam, a Sofia a passar por mim com a desenvoltura desdenhosa da mãe e o advogado sem entender inclinando-se para escutar melhor Perdão?, eu não no tribunal, na quinta, a dirigir-me ao meu pai entre o choro das rãs Nunca devia ter tirado o chapéu da cabeça para que se soubesse quem era o patrão e o advogado com o espanto das sobrancelhas pegando-se à raiz dos cabelos Perdão?, como se dissesse, possesso, não ali no tribunal, no Estoril, no bridge do Estoril diante da janela para as palmeiras do Casino olhando o candeeiro de globo que eu acabara de quebrar O menino é parvo ou faz-se?, o palacete do Estoril onde acompanhei o meu pai vestido como um camponês, de corrente de cobre, botas de carneira, um chapéu velho na cabeça e a cigarrilha nos dentes, o meu pai que deixou o Nash na garagem com chofer fardado a puxar lustro aos cromados e convocou único táxi de Palmela conduzido por uma espécie de palhaço de pala de verniz parando em todas as tabernas com o pretexto de descansar o motor e demorando-se horas entre parreiras e moscas, o meu pai acompanhado pela viúva do farmacêutico escondida atrás de um camaféu de madrepérola e de um leque sevilhano a que faltavam varetas, com um cãozinho microscópico a latir-lhe guinchos no colo, a viúva e eu torrando dentro do táxi que cheirava a caixa de sapatos antiga e o meu pai e o palhaço de pala de verniz a chuparem calicezinhos e a esfriarem o radiador com abanos de trança, enodoados de fuligem, de forma que alcançámos o Estoril muito depois do almoço quando tinham desistido de esperar-nos e jogavam bridge no terraço sobre a praia e as gaivotas, e a minha sogra em lugar de indignar-se com a falta de educação do meu pai que empurrava a viúva e o cãozito microscópico protegido por uma capa de lã casa adentro O menino é parvo ou faz-se?, deixando o palhaço no pátio a cambalear nas hortênsias e a enroscar e a desenroscar o motor do táxi que trepidava explosões e agonias, o meu pai de chávena de chá na mão a mirar a mãe da Sofia e as cunhadas com a pálpebra sonolenta com que mirava a cozinheira, a filha do caseiro, as ciganas, as criadas, sem tirar o chapéu da cabeça nem deixar de fumar, que dali a nada empurraria uma delas para o primeiro quarto livre a fim de lhe erguer a saia e achatar as nádegas contra um armário ou uma cómoda cujas gavetas gemiam, informando quem quer que entrasse» In António Lobo Antunes, O Manual dos Inquisidores, 1996, Publicações Dom Quixote, Grupo Leya, 1996, ISBN 978-972-204-234-5.
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