«(…) Faço tudo o que elas querem mas nunca tiro o chapéu da cabeça para que se saiba quem é o patrão o meu pai de chávena de chá, a viúva do farmacêutico a alimentar de pedacinhos de biscoito o cãozito horrível, e a minha sogra não furiosa, não indignada, indulgente Que pena o seu pequeno não lhe ter herdado o sentido de humor Francisco o mar a seguir às palmeiras, e as gaivotas no pontão sossegadas e brancas tão diferentes dos corvos desgrenhados da quinta Que pena o seu pequeno não lhe ter herdado o sentido de humor Francisco o meu pai calado esmiuçando as cunhadas do bridge na paciência aborrecida com que examinava as vacas no estábulo, a raspar crostas das botas com o canivete e no entanto eu gostava de si pai, gostava de si, não fui capaz de dizer-lhe mas gostava de si, a mãe da Sofia a oferecer torradas que o meu pai não se dava ao trabalho sequer de recusar ocupado com o lodo das solas, a mãe da Sofia, solícita O meu irmão Pedro procurou-o várias vezes por problemas lá do banco quando você foi secretário de Estado lembra-se do Pedro com certeza e no tribunal em Lisboa o advogado para mim O juiz chamou senhor engenheiro o advogado preocupado, inquieto, implorativo, com os cheviotes subitamente baratos e ruços, o corte de cabelo subitamente vulgar aparado por um barbeiro de vão de escada da Penha de França ou da Amadora Não abra a boca durante o julgamento senhor engenheiro não se ponha com essas histórias de patrão um corredor com empregados que escreviam à máquina, convocatórias e avisos que proibiam fumar num painel de cortiça, pessoas à espera e ao fim do corredor uma prateleira de livros, um calendário de parede, dossiers no soalho, uma mesa de repartição pública preenchida por códigos e processos e o juiz entrincheirado de caneta em riste por detrás das leis como para se defender de nós, idêntico a um mestre-escola com a metade inferior da cara oculta por tratados com farpas de cartão a marcarem as páginas, fitando-me como se pedisse desculpa tal como fitei o meu pai quando na semana seguinte ou duas semanas depois da revolução (soldados marchas militares armas prisões a minha sogra e as cunhadas em Espanha em hotéis de terceira ordem nos arredores de Madrid sem malas de viagem sem passaporte apavoradas tentando ligar para Lisboa sem que lhes respondessem tentando ligar para a herdade e os camponeses a insultarem-nas aos berros a minha sogra e as cunhadas em Espanha com vários casacos de peles uns por cima dos outros com vários relógios de ouro em cada pulso e os irmãos da minha sogra humilhados por civis de pistola na companhia de seguros humilhados por civis de pistola no Guincho os irmãos da minha sogra transportados em camionetas de talho para Caxias para Peniche para Vale de Judeus) tal como fitei o meu pai quando na semana seguinte ou duas semanas depois da revolução nos chamou à quinta, à Sofia, aos miúdos e a mim e tinha trancado as janelas e aferrolhado os quadros e as pratas, solto os lobos da Alsácia dos canis e despedido as criadas e nos esperava no topo da escada, de caçadeira no sovaco e os bolsos inchados de cartuchos, o meu pai que continuava a fumar cigarrilhas de chapéu na cabeça O primeiro comunista que se atrever a entrar leva um tiro nos cor… a ameaçar com a caçadeira o pântano, o celeiro, o pomar e a azinhaga de ciprestes, os lobos da Alsácia a rebolarem nos canteiros decepando os narcisos O primeiro comunista que se atrever a entrar leva um tiro nos cor… e o advogado baixinho Pode sentar-se os lobos da Alsácia que se evaporavam a galope na casa tombando cadeiras, rasgando sofás, destruindo reposteiros, que regressavam ao jardim num temporal de caçarolas e panelas, com pedaços de almofadas, de cortinas, de toalhas e o meu pai disparando contra o susto dos corvos O primeiro comunista que se atrever a entrar leva um tiro nos cor…» In António Lobo Antunes, O Manual dos Inquisidores, 1996, Publicações Dom Quixote, Grupo Leya, 1996, ISBN 978-972-204-234-5.
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