domingo, 13 de novembro de 2022

O Pintor de Almas. Ildefonso Falcones. «… calculava-se que em número superior a dez mil, os chamados trinxeraires, sobreviviam nas ruas de Barcelona, mendigando, furtando e dormindo à intempérie…»

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Barcelona. Maio de 1901

«(…) Dalmau enfiou um guarda-pó por cima da camisa bege que lhe chegava até aos joelhos e que, com umas calças de uma mescla de lã e linho de um tom escuro indefinido, boné e sapatos de couro negro abotinados, constituíam a sua indumentária habitual. Quando se sentou diante dos inúmeros esboços espalhados em cima da sua mesa de trabalho e ordenou os lápis, as vozes, os risos, os gritos e os ruídos próprios daquela fábrica em funcionamento, alguns estrepitosos, desvaneceram-se. Dalmau aplicou todos os seus sentidos naqueles desenhos japoneses, tentando assimilar a técnica oriental que prescindia do realismo em busca de uma beleza estilizada, sem sombras, tão distante dos critérios ocidentais quanto apreciada num mercado voltado para a procura da diferença, do exótico, do moderno.

Tal como se abstraiu de qualquer ruído, o silêncio das instalações vazias quando a noite caiu sobre Barcelona apanhou-o absorto no trabalho. Tinha comido quase sem apetite, como se fosse uma contrariedade, o almoço que lhe levaram e, mais tarde, foi respondendo com um simples murmúrio a quantos espreitaram pela porta do seu estúdio para se despedirem. Don Manuel, um dos últimos a sair, não foi excepção e, depois de estalar a língua, um gesto que ninguém saberia se atribuir à satisfação ou ao desgosto, virou costas a Dalmau, que ignorou as suas palavras sem sequer erguer o olhar dos desenhos. Passadas mais algumas horas, a luz dos bicos dos candeeiros a gás que iluminavam o estúdio diminuiu de intensidade até quase o deixar na penumbra. Quem apagou a luz?, protestou Dalmau. Quem anda aí? Sou eu, Paco, respondeu o guarda-nocturno, abrindo a torneira do gás para que o estúdio se iluminasse de novo. A luz revelou um ancião encolhido, envelhecido. Era uma excelente pessoa, mas não devia estar ali. O mestre tinha proibido o acesso aos estúdios, onde se encontravam os esboços e projectos, obras meio concluídas, material que só o pessoal da máxima confiança podia ver.

O que fazes aqui?, perguntou Dalmau, com estranheza. Don Manuel ordenou-me que, se te atrasasses muito, te mandasse embora. O homem sorriu mostrando as gengivas da boca sem dentes. A situação na cidade é complicada, o povo está muito alterado, explicou, e a tua mãe deve estar preocupada. Talvez Paco tivesse razão. De qualquer modo, a distracção concedeu às tripas de Dalmau a oportunidade de protestarem com fome, o que, juntamente com o cansaço que sentiu de repente nos olhos, o aconselhou a dar a jornada por terminada. Apaga, pediu ao vigilante, enquanto atirava o guarda-pó para o cabide que se encontrava a um canto, onde ficou precariamente pendurado por uma das mangas. O que aconteceu na cidade?, quis saber enquanto fechava a secretária.

A situação complicou-se. Os piquetes, principalmente mulheres e adolescentes, percorreram a cidade velha apedrejando as fábricas e oficinas até fecharem. Parece que durante a manhã viraram um eléctrico e isso encorajou-as. Dalmau expirou fundo. Aconteceu algo semelhante com as grandes fábricas do bairro de Sant Martí. Assaltaram esquadras da polícia. A rapaziada aproveitou para fazer das suas e queimou algumas repartições de impostos, provavelmente depois de as assaltarem. Está tudo numa grande agitação. Desceram pelas escadas até aos armazéns do primeiro piso. Aí, antes de sair para o extenso terreno que rodeava as construções, onde se trabalhava a argila, Dalmau despediu-se dos dois gaiatos que não deviam ter mais de dez anos e que viviam e dormiam na fábrica, numa manta no chão, perto do calor dos fornos durante o Inverno, dos quais se iam afastando à medida que o tempo se tornava mais clemente. Nem sequer eram aprendizes; serviam para tudo: limpar, fazer recados, trazer água… Ambos tinham família; era o que diziam: operários que trabalhavam no bairro de Sant Martí, a Manchester Catalã, e sobreviviam amontoados em casas partilhadas por várias famílias. Sant Martí ficava longe e o mestre não via inconveniente em que vivessem na fábrica e ganhassem alguns cêntimos; em troca, apenas lhes exigia que aos domingos fossem à missa na paróquia de Santa Maria del Remei de Les Corts. As famílias não pareciam importar-se que aqueles rapazes vivessem na fábrica, ninguém apareceu a perguntar por eles. Havia-os em piores circunstâncias, pensou Dalmau enquanto revolvia o cabelo despenteado de um deles ao cruzar a porta: um exército de rapazes, calculava-se que em número superior a dez mil, os chamados trinxeraires, sobreviviam nas ruas de Barcelona, mendigando, furtando e dormindo à intempérie, em qualquer buraco onde conseguissem acomodar-se; eram órfãos ou apenas crianças abandonadas, como aqueles dois aprendizes de quem as famílias não podiam cuidar nem alimentar». In Ildefonso Falcones, O Pintor de Almas, Suma das Letras, 2020, ISBN 978-989-665-961-5.

Cortesia de Suma/JDACT

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