Barcelona. Maio de 1901
«(…) Dalmau enfiou um guarda-pó
por cima da camisa bege que lhe chegava até aos joelhos e que, com umas calças
de uma mescla de lã e linho de um tom escuro indefinido, boné e sapatos de
couro negro abotinados, constituíam a sua indumentária habitual. Quando se
sentou diante dos inúmeros esboços espalhados em cima da sua mesa de trabalho e
ordenou os lápis, as vozes, os risos, os gritos e os ruídos próprios daquela fábrica
em funcionamento, alguns estrepitosos, desvaneceram-se. Dalmau aplicou todos os
seus sentidos naqueles desenhos japoneses, tentando assimilar a técnica oriental
que prescindia do realismo em busca de uma beleza estilizada, sem sombras, tão
distante dos critérios ocidentais quanto apreciada num mercado voltado para a
procura da diferença, do exótico, do moderno.
Tal como se abstraiu de qualquer
ruído, o silêncio das instalações vazias quando a noite caiu sobre Barcelona
apanhou-o absorto no trabalho. Tinha comido quase sem apetite, como se fosse
uma contrariedade, o almoço que lhe levaram e, mais tarde, foi respondendo com
um simples murmúrio a quantos espreitaram pela porta do seu estúdio para se
despedirem. Don Manuel, um dos últimos
a sair, não foi excepção e, depois de estalar a língua, um gesto que ninguém
saberia se atribuir à satisfação ou ao desgosto, virou costas a Dalmau, que
ignorou as suas palavras sem sequer erguer o olhar dos desenhos. Passadas mais
algumas horas, a luz dos bicos dos candeeiros a gás que iluminavam o estúdio
diminuiu de intensidade até quase o deixar na penumbra. Quem apagou a luz?,
protestou Dalmau. Quem anda aí? Sou eu, Paco, respondeu o guarda-nocturno,
abrindo a torneira do gás para que o estúdio se iluminasse de novo. A luz
revelou um ancião encolhido, envelhecido. Era uma excelente pessoa, mas não
devia estar ali. O mestre tinha proibido o acesso aos estúdios, onde se
encontravam os esboços e projectos, obras meio concluídas, material que só o
pessoal da máxima confiança podia ver.
O que fazes aqui?, perguntou
Dalmau, com estranheza. Don Manuel
ordenou-me que, se te atrasasses muito, te mandasse embora. O homem sorriu
mostrando as gengivas da boca sem dentes. A situação na cidade é complicada, o
povo está muito alterado, explicou, e a tua mãe deve estar preocupada. Talvez
Paco tivesse razão. De qualquer modo, a distracção concedeu às tripas de Dalmau
a oportunidade de protestarem com fome, o que, juntamente com o cansaço que
sentiu de repente nos olhos, o aconselhou a dar a jornada por terminada. Apaga,
pediu ao vigilante, enquanto atirava o guarda-pó para o cabide que se
encontrava a um canto, onde ficou precariamente pendurado por uma das mangas. O
que aconteceu na cidade?, quis saber enquanto fechava a secretária.
A situação complicou-se. Os
piquetes, principalmente mulheres e adolescentes, percorreram a cidade velha
apedrejando as fábricas e oficinas até fecharem. Parece que durante a manhã viraram
um eléctrico e isso encorajou-as. Dalmau expirou fundo. Aconteceu algo
semelhante com as grandes fábricas do bairro de Sant Martí. Assaltaram
esquadras da polícia. A rapaziada aproveitou para fazer das suas e queimou
algumas repartições de impostos, provavelmente depois de as assaltarem. Está
tudo numa grande agitação. Desceram pelas escadas até aos armazéns do primeiro
piso. Aí, antes de sair para o extenso terreno que rodeava as construções, onde
se trabalhava a argila, Dalmau despediu-se dos dois gaiatos que não deviam ter
mais de dez anos e que viviam e dormiam na fábrica, numa manta no chão, perto
do calor dos fornos durante o Inverno, dos quais se iam afastando à medida que
o tempo se tornava mais clemente. Nem sequer eram aprendizes; serviam para tudo:
limpar, fazer recados, trazer água… Ambos tinham família; era o que diziam:
operários que trabalhavam no bairro de Sant Martí, a Manchester Catalã, e
sobreviviam amontoados em casas partilhadas por várias famílias. Sant Martí
ficava longe e o mestre não via inconveniente em que vivessem na fábrica e
ganhassem alguns cêntimos; em troca, apenas lhes exigia que aos domingos fossem
à missa na paróquia de Santa Maria del Remei de Les Corts. As famílias não
pareciam importar-se que aqueles rapazes vivessem na fábrica, ninguém apareceu
a perguntar por eles. Havia-os em piores circunstâncias, pensou Dalmau enquanto
revolvia o cabelo despenteado de um deles ao cruzar a porta: um exército de rapazes,
calculava-se que em número superior a dez mil, os chamados trinxeraires, sobreviviam nas
ruas de Barcelona, mendigando, furtando e dormindo à intempérie, em qualquer
buraco onde conseguissem acomodar-se; eram órfãos ou apenas crianças abandonadas,
como aqueles dois aprendizes de quem as famílias não podiam cuidar nem
alimentar». In Ildefonso Falcones, O Pintor de Almas, Suma das Letras, 2020, ISBN
978-989-665-961-5.
Cortesia de Suma/JDACT
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