Barcelona. Maio de 1901
«(…) Aquelas duas obras, entre
muitas outras que já clamavam uma mudança, uma concepção diferente da
arquitectura, foram, nas palavras do mestre de Dalmau, as precursoras da Casa
Calvet na Rua Casp de Barcelona, na qual Gaudí começou a abandonar a concepção
historicista, que inspirou a sua obra durante a primeira fase do século anterior,
para desenvolver uma arquitectura na qual pretendia que a matéria ganhasse
movimento. Movimento, as pedras!, exclamava don Manuel
Bello, com a perplexidade espelhada no rosto.
As mulheres e os edifícios,
confessou certa vez a Dalmau, vão-se desprendendo pouco a pouco da sua classe,
porte e senhoria, da sua história, e prostituem-se: umas para se transformarem
em cobras serpenteantes, e outros em matéria inconsistente. O homem virou-lhe
as costas com espalhafato, como se o universo se estivesse a desmoronar. Dalmau
evitou replicar que se sentia atraído por mulheres serpenteantes e que admirava
aqueles que queriam que o ferro forjado, a pedra e, inclusivamente, a cerâmica,
ganhassem movimento. Quem, a não ser um bruxo, um mago, um criador excepcional,
podia apresentar ao espectador a matéria transformada em fluido!
Uma grande carroça carregada de
argila, puxada por quatro poderosos percherons com a cabeça, pescoço e garupa fortes e imponentes,
e patas grossas e peludas, que passou lenta e pesadamente ao seu lado, fazendo
estremecer a terra, arrancou Dalmau dos seus pensamentos. Ergueu a vista para
ver a abarrotada traseira da carroça recortada contra as chaminés altas dos
fornos da fábrica que se erguiam bem acima dele. Manuel Bello García. Fábrica de
Azulejos. Era este o anúncio que, em cerâmica branca e azul, rematava o portal
da entrada; a partir daí, abria-se uma zona ampla com tanques e secadouros,
junto aos armazéns, às oficinas e aos fornos. Era uma fábrica de média dimensão,
que produzia trabalhos em série, mas também elaborava as peças especiais que os
arquitectos ou mestres-de-obras desenhavam ou
imaginavam para os seus edifícios ou os inúmeros estabelecimentos comerciais,
lojas, farmácias, hotéis, restaurantes e outros que recorriam à cerâmica como
um dos elementos decorativos por excelência.
Era esse o trabalho
de Dalmau: desenhar. Criar modelos originais que depois eram fabricados em série
e faziam parte do catálogo da firma; concretizar e desenvolver aqueles que os
mestres-de-obras imaginavam para os seus edifícios ou estabelecimentos, e que apenas
esboçavam, ou então executar os modelos que os grandes arquitectos modernistas
lhes levavam já perfeitamente elaborados. Desculpe, don Manuel…
Dalmau apresentou-se no escritório e estúdio do mestre, junto às oficinas da fábrica,
no primeiro piso de um dos edifícios que compunham o complexo. Mas a situação
no bairro velho era caótica. Manifestações, cargas da polícia, exagerou. Tive
de zelar pela minha mãe e a minha irmã. Devemos cuidar das nossas mulheres,
filho. Don Manuel,
estritamente de negro, sóbrio, como era devido, com uma gravata verde-escura
com um nó enorme, assentiu por detrás da mesa de mogno que ocupava. As patilhas
compridas e fartas juntavam-se ao bigode, também espesso, numa mata de pêlo
impecavelmente delineada que deixava o pescoço e o queixo sem barba. Elas precisam
de nós. Fazes bem. Esses anarquistas e libertários é que vão arruinar o país!
Espero que a Guarda Civil se tenha esforçado com eles! Mão dura! É o que
merecem todos esses ingratos! Não te preocupes, filho. Vai trabalhar. O estúdio
de Dalmau confinava, porta com porta, com o do mestre. Ele também não
trabalhava com os outros empregados, em salas comuns; dispunha de um espaço
para si, um local bastante amplo onde podia concentrar-se no seu trabalho, que
naquela altura consistia em desenhar uma série de azulejos com motivos
orientais: flores-de-lótus, nenúfares, crisântemos, canas de bambu, borboletas,
libélulas…
Dominar o desenho de
flores custou-lhe vários cursos nos estudos que efectuou na escola da Llotja de
Barcelona. As flores naturais, as flores de perfil, as flores à sombra, o
desenho e, por último,
a composição a óleo. Dentro das matérias que se estudavam na Llotja, aonde
Dalmau ingressou aos dez anos, que incluíam aritmética, geometria, desenho
figurativo, desenho linear e decorativo, desenho do natural e pintura, uma das
mais importantes era a do desenho aplicado às artes e ao fabrico. Para isso foi
criada a escola da Llotja, para ensinar arte aos operários que necessitavam com
o objectivo de a aplicarem na indústria.
No entanto, em meados do século XIX
começou a dar-se preferência às artes puras em detrimento das artes aplicadas,
mas sem abandonar estas últimas, as destinadas a providenciar recursos à indústria,
e entre as quais se encontrava, sem dúvida alguma, o desenho de flores. Os
elementos botânicos foram o ornamento por excelência da arte gótica, e agora,
devido à procura das inspirações medievais, usavam-se na decoração de tecidos e
vestidos, a indústria que fazia mover a Catalunha, e, com o modernismo arquitectónico,
em azulejos e revestimentos de paredes, mosaicos, forjados, marcenaria e
vitrais, assim como nos milhares de esculturas de gesso que ornamentavam os
edifícios». In Ildefonso Falcones, O Pintor de Almas, Suma das Letras, 2020, ISBN
978-989-665-961-5.
Cortesia de Suma/JDACT
JDACT, Barcelona, Ildefonso Falcones, Literatura, A Arte,