De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
Um
Bagaço em Rio de Onor
«(…) Estas regras são outras. Por
exemplo, o rapaz que conduzia a vacada leva animais de toda a povoação para o
pasto que é propriedade de todos. Não resta muito da vida comunitária de
antigamente, mas Rio de Onor resiste: oferece pão e bagaço a quem lá vai, e tem
uma fogueira na rua quando o tempo está de chuva e o frio vem chegando. E se
Daniel São Romão estiver em mangas de camisa não se admirem os viajantes: está habituado
e não faz cerimónias. Torna o viajante a passar a ponte. É tempo de se ir
embora. Ainda ouve uma voz de mulher a chamar os filhos: Telmo! Moisés! Leva
consigo a memória, o eco destes nomes hoje tão raros, mas não consegue apagar outros
sons que não chegou a ouvir: os gritos da mulher a quem morreu um filho, que não
sabia ter dentro de si.
História do Soldado José Jorge
Às portas de Bragança, começa a
chover. O tempo está desta feição, rolam no céu grandes nuvens escuras, parece
o mundo que para copiar as aldeias se cobriu de ardósia, mas telhou-se mal,
porque a chuva cai pelos buracos e o viajante tem de refugiar-se no Museu do
Abade de Baçal. Este abade era o padre Francisco Manuel Alves, que em Baçal
nasceu, no ano de 1865. Foi arqueólogo e investigador, não se contentou com as
suas obrigações sacerdotais, tem obra valiosa e alongada. É portanto justo que
o seu nome continue a dizer-se e seja referência deste museu magnificamente
instalado no antigo paço episcopal. O viajante não tem o espanto fácil, fez
suas viagens pela Europa, onde não faltam outras grandezas, mas, medindo em si
mesmo as oscilações do sentimento, conclui que deve estar embruxado. Doutro
modo se não entenderia a sua comoção quando circula pelas salas do museu, aqui
tão longe da capital e das capitais, sabendo muito bem que se trata apenas de
um pequeno museu de província, sem obras-primas, a não ser a do amor com que
foram recolhidos e são expostos os objectos. Pedras, móveis, pinturas e esculturas,
coisas de etnografia, paramentos, e tudo posto com ordem e sentido. Cá está A Pedra Amarela de Dórdio
Gomes, cá estão os excelentes trabalhos de Abel Salazar, de quem certos críticos
desdenham chamando-lhe amador. Ao viajante custa-lhe despegar-se, mesmo estando
a chover foi ao jardim, passeou por entre as lápides, respirou o cheiro das
plantas molhadas, e, enfim, caiu em meditação diante das porcas de
granito, dos berrões, também assim chamados: famoso animal este que em
vida se desmanda, fertilíssimo, em bacorinhos, ranchadas de quinzena, e em
morto se desmancha em pernis, lombos, costelas, orelhas, chispes e coiratos, dadivoso
até ao fim. Diz-se que a origem destas toscas pedras vem da Pré-História. O
viajante não duvida. Para a gente das cavernas e das toscas cabanas que vieram
depois, o porco devia ser a obra-prima da criação. Mais magnífica ainda a
porca, pelas razões já ditas. E quando a Idade Média levantou os pelourinhos
dos municípios, pôs como base deles a porca, animal protector, emblema e
algumas vezes guarda. Os povos nem sempre são ingratos.
O viajante sai para a chuva. Não
quer esquecer-se do que viu, os tectos pintados, os trajos típicos de Miranda,
as ferragens, todo aquele mundo de objectos, mas sabe que irremediavelmente
outras memórias apagarão estas, as confundirão, é a triste sina de quem viaja.
Guardará no entanto para sempre esta escultura do século XVI, uma Virgem com o Menino, gótica, de
roupagens que são um esplendor, quebrado o corpo pela cintura, numa linha
sinuosa que se prolonga para além do rosto de puríssimo oval, talvez flamengo.
E como o viajante tem excelentes olhos para contrastes e contradições, vai
comparando, à chuva, o quadro de Roeland Jacobsz que representa Orfeu amansando
com a música da sua harpa as brutas feras, e um outro, de autor anónimo
quinhentista, que mostra Santo Inácio a ser devorado pelos leões. Podia a música
o que a fé não logrou. Não há dúvida, pensa, houve uma idade de ouro.
Absorto nas suas reflexões, não
reparou que deixara de chover. Ia a fazer figura de distraído, com o
guarda-chuva aberto, espectáculo que todos já demos, sorriso irreprimível. O
viajante vai ao castelo, sobe as calçadinhas estreitas e empedradas à antiga,
aprecia o pelourinho, com a sua cruz em cima e a sua porca em baixo, e dá a
volta à Domus Municipalis, que devia estar aberta e não está. Quem a vê em
fotografias julgá-la-á rectangular, e fica surpreendido ao dar com cinco lados
desiguais, que uma criança não desenharia. Que razões podem ter levado a este
risco, não se sabe, ou desconhece-as o viajante. E muito mais que averiguar se
a construção é romana, ou vem do domínio grego, ou é simplesmente medieval, o
que intriga o viajante é este pentágono torto para que não encontra explicação.
Da
Igreja de Santa Maria do Castelo o viajante apenas vê o portal, e como não é
muito sensível às exuberâncias barrocas dá mais atenção ao grão do granito do
que aos cachos e folhas que se enrolam nas colunas torsas. Mais tarde há-de dar
o dito por não dito, reconhecer a dignidade particular do barroco, mas, antes
disso, ainda muito terá que andar. De igrejas de Bragança pouco mais lhe
interessou, a não ser, e por motivos de curta história, a Igreja de São
Vicente, onde, segundo reza a tradição, casaram clandestinamente dom Pedro e
dona Inês de Castro. Assim será, mas das pedras e paredes de então nada
resta, e o local nada sugere de tão grandes e políticos amores». In
José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão
2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,