De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
Um
Bagaço em Rio de Onor
«(…) Eis Rio de Onor. Dobrou-se
uma curva, aparece entre as árvores um luzeiro de água, ouve-se um restolhar
líquido sobre as fragas, e depois há uma ponte de pedra. O rio, como é sua
obrigação, chama-se Onor. Os telhados das casas são de ardósia, quase todos, e
com este tempo húmido brilham e aparecem mais escuros que a sua natural cor de
chumbo. Não chove, ainda não choveu hoje, mas toda esta paisagem escorre, é
como se estivesse no fundo de um vale submarino. O viajante olhou com todo o
seu vagar e seguiu para o outro lado. Não está bem em si. Afinal chegou a Rio
de Onor, tanto o quis e agora nem parece contente. Certas coisas que muito se desejam,
não é raro que nos deixem perdidos quando as obtemos. Só assim se entende que o
viajante vá perguntar pelo caminho para Guadramil, aonde, contudo, não chegará
a ir, por causa do mau estado da estrada. Assim lho dizem. Então o viajante
decide comportar-se segundo a sua condição. Avança por uma rua que é como um
extenso charco, salto aqui, salto acolá, e vai tão atento a reparar onde põe os
pés que só no último instante viu que tem companhia. Dá os bons-dias (nunca se
habituou à saudação urbana que limita os bons votos a um dia de cada vez), e
assim mesmo é que lhe respondem, um homem e uma mulher que ali estão sentados,
ela com um grande pão no regaço, que daqui a pouco partirá para compartilhar
com o viajante. Estão os dois e o alambique, um gigante de cobre ao ar livre,
sem nenhum medo às humidades, o que não admira, com a fogueirinha que tem por
baixo. O viajante diz o que costuma: Ando por aqui a fazer uma visita. É uma
bonita terra. O homem não dá opinião. Sorri e pergunta: Quer provar do nosso
bagaço? Ora, o viajante não é bebedor: gosta do seu vinho branco ou tinto, mas
tem um organismo que repele aguardentes. Porém, em Rio de Onor, um bagaço
pode-se lá recusar, mesmo vindo ainda tão longe a hora do almoço. Em dois
segundos, aparece um copito de vidro grosso e o bagaço, ainda quente, é aparado
da bica e emborcado garganta abaixo. Uma plaina não seria menos áspera. Há uma explosão
no estômago, o viajante sorri heroicamente, e repete. Talvez para reparar os
estragos, a mulher abraça o pão contra o peito, tanto amor neste gesto, corta
um canto e uma fatia, e é o seu olhar que pergunta: Quer um bocadinho? O
viajante não pediu e foi-lhe dado. Quer-se melhor dar do que este?
A próxima meia hora vai o
viajante passá-la conversando com Daniel São Romão e sua mulher, ali sentados
os três ao calorzinho brando do lume. Há outras pessoas que passam e param, e
depois seguem, e cada uma diz o seu recado. Vive-se muito mal em Rio de Onor.
Aqui, uma dor de dentes cura-se com bochechos de bagaço. Ao cabo de uns tantos,
não se sabe se passou a dor, se está embriagado o dorido. Ainda assim, com isto
pode a gente sorrir, mas não com a história daquela mulher que estava grávida
de dois gémeos, e quando o primeiro filho lhe nasceu não sabia que ainda tinha
segundo para atirar ao mundo, e essas aflições foram tais que levou vinte e
quatro horas a sofrer sem saber de quê, e quando a criança enfim nasceu foi uma
admiração, e vinha morta. O viajante não anda a viajar para ouvir estas coisas.
O bagaço é uma excelente e pitoresca ideia, sim senhores, pôr aqui o amigo
Daniel São Romão a oferecer saúdes aos turistas, mas é preciso cuidado com
estas histórias, convém vigiar as confidências do povo, que irão pensar os
estrangeiros.
Daniel
São Romão explica como se faz o bagaço. Levanta-se e diz ao viajante que o
acompanhe, e ele vai, ainda mordendo o seu naco de pão, aqui está a matéria-prima,
o engaço da uva, uma tulha cheia. Mas o bagaço não é de boa qualidade, diz o
produtor, e o viajante pasma da honradez. Desde que fez o sermão aos peixes,
desde o Menino Jesus da Cartolinha, o viajante preocupa-se com a possibilidade
de incidentes fronteiriços: Como é isto aqui? Dão-se bem com os espanhóis? A informante
é uma velha de grande antiguidade que nunca dali saiu, e por isso sabe do que
fala: Sim senhor. A gente até tem terras do lado de lá. Confunde-se o viajante
com esta imprecisão de espaço e propriedade, e torna a ficar confundido quando
outra velha menos velha acrescenta tranquilamente: E eles também têm terras do
lado de cá. Aos seus botões, que lhe não respondem, o viajante pede auxílio de
entendimento. Afinal de contas, onde está a fronteira? Como se chama este país,
aqui? Ainda é Portugal? Já é Espanha? Ou é só Rio de Onor, e nada mais do que
isso?» In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora,
Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,