De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
Tentações do Demónio
«(…) Há quem não garanta nada sem
jurar, há quem se recuse a mais que sim sim, não não. Digamos que o viajante
está no termo médio destas posições, e só por isso não faz juramento formal de
apenas viajar, futuramente, por este tempo brumoso e de chuva, no Outono,
quando o céu se esconde e as folhas caem. Belo é sempre o Verão, sem dúvida,
com o seu sol, sua praia, sua latada de sombra, seu refresco, mas que se há-de
dizer deste caminho entre florestas onde a bruma se esfarrapa ou adensa, às vezes
ocultando o horizonte próximo, outras vezes rasgando-se para um vale que parece
não ter fim. As árvores têm todas as cores. Se alguma falta, ou quase se
esconde, é precisamente o verde, e quando ainda se mantém está já a
degradar-se, a tomar o primeiro grau do amarelo, que começará por ser vivo em
alguns casos, depois surgem os tons de terra, o castanho-pálido, logo escuro, às
vezes a cor do sangue vivo ou coalhado. Estas cores estão nas árvores, cobrem o
chão, são quilómetros gloriosos que o viajante gostaria de percorrer a pé,
mesmo sendo tão longe de Bragança a Chaves, que é o seu primeiro destino de
hoje.
Diz-se, em corrente estilo, que
as árvores no nevoeiro são como fantasmas. Não é verdade. As árvores que
aparecem entre estas névoas têm uma presença intensíssima, é como gente que vem
à estrada e acena a quem passa. O viajante pára, olha para o vale, e tem uma
impressão que pensaria não ser possível: gosta de nada ver, apenas esta
brancura irreprimível, que mais adiante se tornará a rasgar para mostrar outra
vez a floresta neste mundo quase desabitado que se prolonga até Vinhais. Porém,
o melhor deste dia será a passagem do rio Tuela. Da ponte não tem o viajante
memória, nem sequer do rio, talvez, e só, o espumejar da água entre as pedras,
mas isto é o que tem para oferecer qualquer rio ou ribeira destes sítios. Aquilo
que ao viajante não esquecerá enquanto viver é a sufocante beleza do vale neste
lugar, nesta hora, nesta luz, neste dia. Talvez que em Agosto ou Maio, ou amanhã,
tudo seja diferente, mas agora, exactamente agora, o viajante sabe que vive um
momento único. Dir-lhe-ão que todos os momentos são únicos, e isso é verdade,
simplesmente ele responde que nenhum outro é este. A bruma já se levantou,
apenas sobre a crista dos montes se vão arrastando esfarrapadas névoas, e aqui
o vale é um imenso e verde prado, com as árvores que o cortam e povoam em todas
as direcções, fulvas, douradas, negras, e há um profundo silêncio, um silêncio
total, raro, angustioso, mas que é necessário a esta solidão, a este minuto
inesquecível. O viajante vai-se embora dali, não pode lá ficar para sempre, mas
afirma e jura que, de uma certa maneira que nem sabe explicar, continua sentado
na beira da estrada, a contemplar as árvores, a olhar esta primeira porta do
paraíso.
Entre Vinhais e Rebordelo a chuva
foi constante. Este caminho é uma festa que o céu acompanha enviando tudo
quanto tem para mostrar. Agora começa a surgir entre as nuvens o primeiro
azul-aguado, a primeira promessa de tréguas. E quando o viajante se aproxima de
Chaves já é muito maior o espaço de céu limpo, as nuvens fazem a sua obrigação
e aproveitam o vento alto, mas recolheram a chuva, são flotilhas de barcos de recreio
a espairecer, todas de velas brancas e galhardetes. Aliás, bem está que assim
seja: a veiga de Chaves não merecia outra coisa. Desdobrada nas duas margens do
Tâmega, divide-se em canteiros cultivados com minúcia, trabalho de hortelão e
ourives. O viajante, que vem de paisagens agrestes e rudezas primitivas, tem de
habituar-se outra vez à presença do trabalho transformador.
Antes de entrar em Chaves, o
viajante vai a Outeiro Seco, não mais do que três quilómetros para norte. Ali,
logo à entrada da povoação, está a Igreja de Nossa Senhora da Azinheira, peça
românica do século XIII, célebre muitas léguas em redor, não tanto pelos seus
merecimentos arquitectónicos, ou também alguma coisa, mas sobretudo por a
escolherem para celebração de matrimónios e baptizados as classes altas da região.
Vão ali de Vila Real, de Guimarães, e até do Porto. À noite, quando as pedras podem
falar sem testemunhas, deve haver grandes conversas entre elas, quem estava,
quem casou ou saiu baptizado, como ia a noiva vestida e se a mãe dela chorava
com a comoção natural das mães que vêem sair as filhas do seu regaço, hoje
muito menos protector do que antigamente.
Estava
o viajante neste seu filosofar de três um vintém, e ouvia distraidamente o
resto das explicações que lhe dava a mulher da chave, desencantada da sua casa
duzentos metros adiante, quando da parte de trás da igreja se levantou um alto
choro, de mulher também, um ganido lancinante, como um gemido que de si próprio
se queixasse. O viajante teve um arrepio e jura que se arrepiaram nas paredes
as figuras dos frescos. Olhou surpreendido a mulher da chave e mais
surpreendido ficou ao vê-la com um sorrizinho de troça nada próprio do lugar e
da situação. Que é isto?, perguntou. E a mulher da chave respondeu: Ali, não
é nada. É uma criatura a quem morreu a filha, e todos os dias vem aí a chorar
para o cemitério. Uma exagerada. E quando sente alguém perto, é quando se põe aos
gritos». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora,
Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.
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