segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Viagem a Portugal. José Saramago. «Ali, não é nada. É uma criatura a quem morreu a filha, e todos os dias vem aí a chorar para o cemitério. Uma exagerada. E quando sente alguém perto, é quando se põe aos gritos»

 

 jdact e cortesia de wikipedia

De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

Tentações do Demónio

«(…) Há quem não garanta nada sem jurar, há quem se recuse a mais que sim sim, não não. Digamos que o viajante está no termo médio destas posições, e só por isso não faz juramento formal de apenas viajar, futuramente, por este tempo brumoso e de chuva, no Outono, quando o céu se esconde e as folhas caem. Belo é sempre o Verão, sem dúvida, com o seu sol, sua praia, sua latada de sombra, seu refresco, mas que se há-de dizer deste caminho entre florestas onde a bruma se esfarrapa ou adensa, às vezes ocultando o horizonte próximo, outras vezes rasgando-se para um vale que parece não ter fim. As árvores têm todas as cores. Se alguma falta, ou quase se esconde, é precisamente o verde, e quando ainda se mantém está já a degradar-se, a tomar o primeiro grau do amarelo, que começará por ser vivo em alguns casos, depois surgem os tons de terra, o castanho-pálido, logo escuro, às vezes a cor do sangue vivo ou coalhado. Estas cores estão nas árvores, cobrem o chão, são quilómetros gloriosos que o viajante gostaria de percorrer a pé, mesmo sendo tão longe de Bragança a Chaves, que é o seu primeiro destino de hoje.

Diz-se, em corrente estilo, que as árvores no nevoeiro são como fantasmas. Não é verdade. As árvores que aparecem entre estas névoas têm uma presença intensíssima, é como gente que vem à estrada e acena a quem passa. O viajante pára, olha para o vale, e tem uma impressão que pensaria não ser possível: gosta de nada ver, apenas esta brancura irreprimível, que mais adiante se tornará a rasgar para mostrar outra vez a floresta neste mundo quase desabitado que se prolonga até Vinhais. Porém, o melhor deste dia será a passagem do rio Tuela. Da ponte não tem o viajante memória, nem sequer do rio, talvez, e só, o espumejar da água entre as pedras, mas isto é o que tem para oferecer qualquer rio ou ribeira destes sítios. Aquilo que ao viajante não esquecerá enquanto viver é a sufocante beleza do vale neste lugar, nesta hora, nesta luz, neste dia. Talvez que em Agosto ou Maio, ou amanhã, tudo seja diferente, mas agora, exactamente agora, o viajante sabe que vive um momento único. Dir-lhe-ão que todos os momentos são únicos, e isso é verdade, simplesmente ele responde que nenhum outro é este. A bruma já se levantou, apenas sobre a crista dos montes se vão arrastando esfarrapadas névoas, e aqui o vale é um imenso e verde prado, com as árvores que o cortam e povoam em todas as direcções, fulvas, douradas, negras, e há um profundo silêncio, um silêncio total, raro, angustioso, mas que é necessário a esta solidão, a este minuto inesquecível. O viajante vai-se embora dali, não pode lá ficar para sempre, mas afirma e jura que, de uma certa maneira que nem sabe explicar, continua sentado na beira da estrada, a contemplar as árvores, a olhar esta primeira porta do paraíso.

Entre Vinhais e Rebordelo a chuva foi constante. Este caminho é uma festa que o céu acompanha enviando tudo quanto tem para mostrar. Agora começa a surgir entre as nuvens o primeiro azul-aguado, a primeira promessa de tréguas. E quando o viajante se aproxima de Chaves já é muito maior o espaço de céu limpo, as nuvens fazem a sua obrigação e aproveitam o vento alto, mas recolheram a chuva, são flotilhas de barcos de recreio a espairecer, todas de velas brancas e galhardetes. Aliás, bem está que assim seja: a veiga de Chaves não merecia outra coisa. Desdobrada nas duas margens do Tâmega, divide-se em canteiros cultivados com minúcia, trabalho de hortelão e ourives. O viajante, que vem de paisagens agrestes e rudezas primitivas, tem de habituar-se outra vez à presença do trabalho transformador.

Antes de entrar em Chaves, o viajante vai a Outeiro Seco, não mais do que três quilómetros para norte. Ali, logo à entrada da povoação, está a Igreja de Nossa Senhora da Azinheira, peça românica do século XIII, célebre muitas léguas em redor, não tanto pelos seus merecimentos arquitectónicos, ou também alguma coisa, mas sobretudo por a escolherem para celebração de matrimónios e baptizados as classes altas da região. Vão ali de Vila Real, de Guimarães, e até do Porto. À noite, quando as pedras podem falar sem testemunhas, deve haver grandes conversas entre elas, quem estava, quem casou ou saiu baptizado, como ia a noiva vestida e se a mãe dela chorava com a comoção natural das mães que vêem sair as filhas do seu regaço, hoje muito menos protector do que antigamente.

Estava o viajante neste seu filosofar de três um vintém, e ouvia distraidamente o resto das explicações que lhe dava a mulher da chave, desencantada da sua casa duzentos metros adiante, quando da parte de trás da igreja se levantou um alto choro, de mulher também, um ganido lancinante, como um gemido que de si próprio se queixasse. O viajante teve um arrepio e jura que se arrepiaram nas paredes as figuras dos frescos. Olhou surpreendido a mulher da chave e mais surpreendido ficou ao vê-la com um sorrizinho de troça nada próprio do lugar e da situação. Que é isto?, perguntou. E a mulher da chave respondeu: Ali, não é nada. É uma criatura a quem morreu a filha, e todos os dias vem aí a chorar para o cemitério. Uma exagerada. E quando sente alguém perto, é quando se põe aos gritos». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

Cortesia de PEditora/JDACT

 JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,