quinta-feira, 3 de novembro de 2022

O Pintor de Almas. Ildefonso Falcones. «Poucos anos depois, Puig i Cadafalch assumiu a reconstrução da Casa Amatller, no Paseo de Gràcia, com elementos góticos, quebrando simetrias e classicismos…»

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Barcelona. Maio de 1901

«(…) Cala-te! Que nojo!, queixou-se Emma, empurrando Montserrat. Mas porque tens de imaginar as mulheres nuas?, perguntou a Dalmau. Não te chega o que tens em casa? Fez esta última observação a arrastar as palavras, com um tom de voz doce, aduladora. Dalmau puxou-a para si e beijou-a nos lábios. Claro que me satisfaz, sussurrou.

Com efeito, à excepção de recorrer a fotografias eróticas, às escondidas, nas quais estudava a nudez feminina que o mestre lhe impedia, Emma era a única que tinha posado nua para ele. Montserrat, conhecedora do facto, também se ofereceu para o fazer. Como vou pintar nua a minha própria irmã?, contestou. É algo artístico, não?, insistiu ela, fazendo menção de tirar a camisa, o que Dalmau impediu agarrando-lhe a mão. Adoro os desenhos que fizeste da Emma! Está tão…, sensual! Tão mulher! Parece uma deusa! Ninguém diria que é cozinheira. Gostava de verme assim e não como uma vulgar operária de uma fábrica de estampagem de tecidos de algodão.

Ao ver que a irmã puxava para baixo a saia floreada que vestia como se quisesse livrar-se desta, Dalmau fechou os olhos por instantes. Eu também gostava que me desenhasses assim, opinou Montserrat. E a mãe iria gostar?, interrompeu ele. Montserrat contorceu o lábio superior e abanou a cabeça, resignada. Não é preciso que te pinte nua para saberes que és tão bonita quanto Emma, Dalmau procurou confortá-la. Todos se apaixonam por ti! Estão loucos por ti, tens-nos aos teus pés. Naquele dia, devido ao derrube do eléctrico nas Ramblas, Dalmau já estava bastante atrasado para o trabalho e não tinha tempo para se divertir na imaginária nudez das burguesas que se pavoneavam no Paseo de Gràcia. Tampouco para observar as construções modernistas que se erguiam no Eixample, o Ensanche de Barcelona: a zona extramuros da cidade onde, durante séculos, se proibiu a construção por motivos de defesa militar e que, no século XIX, com a demolição das muralhas, foi urbanizada. O mestre Bello desprezava aquelas construções modernistas, embora fizesse bom negócio na sua fábrica a vender cerâmica aos construtores.

Filho, desculpou-se no dia em que Dalmau se atreveu a chamar a atenção para essa contradição, negócio é negócio. O certo era que, tal como sucedia com os vestidos das mulheres, o modernismo impôs mudanças importantes desde a Exposição Universal de Barcelona de 1888, uma evolução difícil de admitir para as personalidades mais conservadoras. Na última década do século XIX, as mulheres, livres da crinolina que as assemelhava aos caracóis, continuaram a usar vestidos rígidos, idênticos aos medievais. Durante essa década, os arquitectos também procuraram inspirar-se na Idade Média tentando emular a grandeza da Catalunha daquela época. Domènech i Montaner recuperava técnicas com materiais da própria terra, como os tijolos à vista, e assim construiu o café-restaurante da própria exposição de 1888, um imponente castelo com ameias de influências orientais, no qual, todavia, foi concedida licença para colocar, no friso exterior, cerca de cinquenta escudos de cerâmica de cor branca, dos mais de cem que tinha previstos, onde se anunciavam os produtos que se podiam consumir no interior do estabelecimento: um marinheiro a beber genebra, uma rapariga a comer um gelado, uma cozinheira a preparar chocolate…

Poucos anos depois, Puig i Cadafalch assumiu a reconstrução da Casa Amatller, no Paseo de Gràcia, com elementos góticos, quebrando simetrias e classicismos e dotando Barcelona da sua primeira fachada colorista. Nesta, tal como havia feito Domènech no seu café-restaurante da Exposição Universal, Puig jogou com os elementos decorativos e, aproveitando os interesses do proprietário do edifício, incluiu uma multiplicidade de animais grotescos: um cão, um gato, uma raposa, uma cabra, uma ave e uma lagartixa como guardiões; uma rã que sopra vidro e outra que brinda com um copo; dois suínos a esculpirem um jarrão; um asno a ler um livro, outro que o observa com óculos; um leão apaixonado pela fotografia junto a um urso com um guarda-chuva; um coelho que funde metal enquanto outro lhe leva água, e um macaco que martela numa bigorna». In Ildefonso Falcones, O Pintor de Almas, Suma das Letras, 2020, ISBN 978-989-665-961-5.

Cortesia de Suma/JDACT

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