Barcelona. Maio de 1901
«(…)
Emma e Montserrat, transpiradas, com o rosto sujo e enegrecido devido ao pó que
se levantou com a queda do vagão, saltavam excitadas, instigavam as
companheiras e erguiam os braços empoleiradas no eléctrico.
Dalmau sentiu os pêlos do corpo a
eriçarem-se ao ver aquelas duas jovens mulheres. Valentes! Empenhadas! Recordou
as vezes em que, juntamente com as mães e as mulheres dos operários, se precipitaram
para a rua em defesa de uma causa. Dalmau não chegava a ser dois anos mais
velho do que elas e, apesar disso, aquelas duas jovens, como se o facto de
serem mulheres a tal as obrigasse, superavam-no em ousadia e gritavam,
insultavam e, inclusivamente, desafiavam a Guarda Civil. E agora estavam ali,
em cima de um eléctrico que tinham acabado de derrubar com as mãos. Dalmau
estremeceu, depois ergueu o punho e, excitado, juntou-se aos gritos e
reivindicações da populaça.
A emoção e o estrondo ainda
continuavam a ecoar no íntimo de Dalmau, agitando-o, ensurdecendo-o, enquanto
subia o Paseo de Gràcia de Barcelona em direcção à fábrica de cerâmica onde trabalhava,
situada em Les Corts, num descampado junto à ribeira de Bargalló. Não chegou a
ter oportunidade de falar com as duas jovens pois, assim que conseguiram o seu
objectivo, o nervosismo demonstrado pela Guarda Civil forçou a dissolução do
piquete e fez com que as mulheres e os filhos dispersassem em todas as direcções.
Talvez Montserrat e Emma fossem reconhecíveis, pensou Dalmau. Com toda a
certeza, disse para si, e sorriu ao mesmo tempo que dava um pontapé na folha caída
de uma árvore. Quem podia esquecê-las ali de pé, em cima do eléctrico? No
entanto, confundiram-se rapidamente com as outras que se encontravam no mercado
da Boqueria ou nas Ramblas: mulheres como tantas outras, vestidas com saia
comprida até aos artelhos, avental e camisa, de um modo geral com as mangas
arregaçadas. As mais velhas costumavam ter a cabeça coberta com um lenço, em
geral negro; as outras apanhavam o cabelo num carrapito, sem chapéu. Eram
mulheres radicalmente diferentes das que se podiam ver a deambular pelo Paseo
de Gràcia, ricas e elegantes.
Todos os dias, quando ia ou vinha
por aquela grande artéria da Cidade Condal, Dalmau entretinha-se a contemplar
as senhoras que passeavam, orgulhosas, por entre amas vestidas de branco com os
seus bebés, cavalos e carruagens. O peito, o ventre e as nádegas; diziam que
esses eram os três padrões pelos quais se devia julgar a mulher ideal. A moda
feminina tinha evoluído com o modernismo, tal como a arquitectura e as outras
artes, e foi substituindo as peças medievais, rígidas, usadas durante a última
década do século anterior, por outras que revelavam mulheres vivas, com os
corpetes a realçarem as formas naturais dos corpos numa espécie de serpentear
maravilhoso: seios espetados; ventres planos, comprimidos, e atrás as nádegas,
empinadas, como se estivessem dispostas a atacar a qualquer momento. Quando
tinha tempo, Dalmau sentava-se num dos bancos do Paseo e fazia esboços a lápis
daquelas mulheres, embora na sua imaginação costumasse evitar a vestimenta e as
desenhasse nuas. Não queria limitar-se àquilo que os corpetes e os vestidos
insinuavam. Os pés, as pernas, os tornozelos, sobretudo os tornozelos, finos e
magros, com os tendões tensos como cordas; mãos e braços. E os pescoços! Porquê
reparar só naqueles três critérios: peito, ventre e nádegas? Gostava do nu
feminino, mas infelizmente não tinha oportunidade de trabalhar com modelos
despojadas de roupa; o seu mestre, don Manuel
Bello, proibira-o. Nus masculinos, sim; femininos, não. Se ele não o fazia,
contrapunha o mestre, não seria Dalmau a fazê-lo. Era compreensível para quem
conhecesse a mulher de don Manuel, zombava
Dalmau às escondidas. Burguesa, reaccionária, conservadora, católica
recalcitrante (até à medula!), virtudes estas que partilhava com o marido, a
mulher agarrava-se à moda velha, abandonada há alguns anos, e ainda usava a
crinolina, uma espécie de armação que se atava à cintura para que a saia ficasse
bojuda atrás.
Tal qual um caracol!, troçava,
quando explicava a Montserrat e a Emma. Tudo para a frente e uma espécie de
carapaça que lhe sai do rabo e que carrega aonde quer que vá. Acreditam que sou
incapaz de a imaginar nua? As duas riram. Nunca tiraste a carapaça a um
caracol?, perguntou-lhe a irmã. Pois pões um pouco de cabelo a essa lesma em
vez dos cornichos e aí tens a tua burguesa nua, babando-se como todas elas». In Ildefonso
Falcones, O Pintor de Almas, Suma das Letras, 2020, ISBN 978-989-665-961-5.
Cortesia de Suma/JDACT
JDACT, Barcelona, Ildefonso Falcones, Literatura, A Arte,