«(…) Pessimismo antropológico e cosmológico até, mas nem sempre expresso através das formas literárias consuetas, dos achadilhos conceituosos da tese e da antítese, como em Petrarca e nos petrarquistas, da afirmação e da negação, da dúvida e da fé, da ilusão e da sua consciência lúcida (desilusão), da aceitação e da atitude inconformista, do crer e do duvidar. É talvez especificamente melódico o recurso à expressividade de um humorismo transcendente para significar a problemática da dor pelo próprio sujeito experimentada. A vocação do moralista ergue-o na passagem do concreto para a reflexão sentenciosa, mas sem um divórcio temático do aforístico em relação ao vivencial ou ao religioso.
Não raro, as fontes clássicas
insinuam na palavra poética o recurso a uma erudição profundamente assimilada,
mas porque o poeta sabe colocá-la no seu verdadeiro plano de arte ou de
artifício, nunca a cultura abafa a experiência, e por isso nunca o artifício
sábio ou técnico se sobrepõe à arte. Mas estamos em crer que os sonetos mais
artisticamente valiosos de dom Francisco Manuel são os de tema
predominantemente religioso, como Antes
da Confissão. Já num outro estudo tivemos oportunidade para relevar
os elementos essenciais de valorização estética desta composição e não vamos
aqui repetir-nos. A palavra poética, nesta parte de As Segundas Três Musas, assume, como na Retórica
renascentista, a plenitude de um valor directamente ligado ao humano. Não há dúvida de que
uma tal poesia exprime, na arte, o próprio homem.
As
Éclogas.
A Sanfonha de Euterpe, segunda parte de As Segundas Três Musas, é
formada por éclogas e cartas. Já se observou que falta às primeiras o ambiente
genuinamente pastoril que deveria caracterizar o género, mas nisto, como aliás
na própria substância doutrinal, o Melodino segue a lição e o exemplo de Sá de
Miranda, seu modelo também nas cartas.
A écloga Casamento, que integra o
cap. II de PEM, é talvez, neste domínio, o exemplo mais representativo. O tema
era muito do agrado do nosso autor, que o tratou também na Carta de Guia de Casados.
Os dois pastores do diálogo
discordam de critério, quanto às virtudes a preferir na mulher, já que um opta
pela beleza e outro mais solidamente pelos bens materiais. O cura, discreto e avisado segundo
o cânone do ideal normativo da época, concilia as duas opiniões de acordo com
um ideal de equilíbrio e moderação. A lição do meio termo é igualmente
preconizada nas éclogas Temperança
e Rústica. Mediano, aliás, é o nome de um dos interlocutores de Temperança, cujo conselho, de resto,
pode resumir-se nos dois versos que, com outros, se encontravam gravados no
templo aonde os dois pescadores (Afouto e Medroso) são levados por Mediano: Caminha
sempre a um justo fim direito, / fugindo todo extremo perigoso. E assim como,
em Basto, Gil exprime as
ideias de Sá de Miranda, na écloga Rústica,
por exemplo, Cremente tem palavras cujo tom de pessimismo profundo e sentido
reflecte a experiência dolorosa de dom Francisco Manuel de Melo. A lição de
moralidade, que informa o suco didáctico das éclogas, não apagou o sinete
autêntico de transposição da vida vivida na palavra poética. Mas as cartas são,
a este respeito, ainda mais interessantes.
[...]» In José Pina Martins, A Obra
Poética de D. Francisco Manuel de Melo, HALP 31, Fundação Calouste Gulbenkian,
2004, ISSN 1645-5169.
Cortesia de FCGulbenkian/JDACT
JDACT, José Pina Martins, Isabel Allegro Magalhães, Poesia, D. Francisco Manuel de Melo, Século XVII,