De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
«(…) Manhã cedo, acorda. A cama
não é só alta, é também imensa. Nas paredes do quarto há uns retratos de gente
antiga que fitam severamente o intruso. Há conflito. O viajante levanta-se,
abre a janela e vê que vai passando em baixo um pastor com as ovelhas, os tempos
mudaram seu bocado, tanto assim que este pastor não se comporta como os dos romancezinhos
bucólicos, não levanta a cabeça, não se descobre, não diz: Deus o salve, meu
senhor. Se não fosse distraído com a sua vida, diria apenas: Bons dias,
e não poderia desejar melhor ao viajante, que dos dias só isso quer, que sejam
bons. O viajante despede-se e agradece a quem lhe deu dormida por esta noite, e
antes de se meter ao caminho torna atrás, a Torre de Moncorvo. Não vai deixar
desgostos nas suas costas, nem deitaria a vila ao desdém, que o não merece.
Agora que é dia claro, ainda que enevoado, já não precisa de letreiros nas
esquinas. A igreja está ali adiante, com o seu pórtico renascentista e a alta
torre sineira que lhe dá um ar de fortaleza, impressão acentuada pelos extensos
panos de muralha que envolvem o conjunto. Dentro são três as naves, demarcadas
por grossas colunas cilíndricas. Trancada a porta, em tempo de alvoroço
militar, muito teriam de roer os inimigos antes de poderem rezar lá dentro as
suas próprias missas. Mas a paz com que o viajante vai por aqui circulando
dá-lhe tempo para tomar o gosto ao tríptico de madeira esculpida e pintada que
representa passos da vida de Santa Ana e de S. Joaquim, e a outras peças de não
menor valor. De jeito renascentista é também a Igreja da Misericórdia, e o
púlpito de granito, com figuras em relevo, valeria, por si só, a paragem em
Torre de Moncorvo.
Agora o viajante afasta-se das
obras de arte. Meteu por um mau caminho, ali mesmo à boca da ponte, que passa
sobre a ribeira da Vilariça, e vai subindo, subindo, parece que não tem fim a
estrada, e é o caso que, de tão nus os montes que a um lado e outro se derrubam
para o vale, chega o viajante a temer que um golpe de vento o leve pelos ares,
o que seria outra maneira de viajar de bem pior destino. Em todo o caso, diante
desta largueza de paisagem, é como se asas tivesse. Daqui por alguns meses,
tudo ao longe serão amendoeiras floridas. O viajante deita-se a imaginar, escolheu
na sua memória duas imagens de árvore em flor, as melhores que tinha, escolheu
amendoeira e brancura, e multiplicou tudo por mil ou dez mil. Um
deslumbramento. Mas não o é menor este vale fertilíssimo, mais afortunado do
que os campos do Ribatejo, que já não colhem das cheias o benefício do nateiro,
e sim a desgraça das areias. Aqui, as águas que a ribeira leva e se juntam às
do rio Sabor refluem diante do grande caudal do Douro e vêm espraiar-se por
todo o vale, onde ficam a decantar as matérias fertilizantes que trazem em
suspensão. É a rebofa, dizem os habitantes de cá, para quem o Inverno, se a
mais se não desmanda, é uma estação feliz.
Esta estrada vai dar à aldeia de Estevais, depois a Cardanha e Adeganha. O viajante não pode parar em todo o lado, não pode bater a todas as portas a fazer perguntas e a curar das vidas de quem lá mora. Mas como não sabe nem quer despegar-se dos seus gostos e tem a fascinação do trabalho das mãos dos homens, vai até Adeganha onde lhe disseram que há uma preciosa igrejinha românica, assim deste tamanho. Vai e pergunta, mas antes pasma diante da grande e única laje granítica que faz de praça, eira e cama de luar no meio da povoação. Em redor, as casas são aquelas que em Trás-os-Montes mais se encontram nos lugares esquecidos, é a pedra sobre a pedra, a padieira rente ao telhado, os humanos no andar de cima, os animais em baixo. É a terra do sono comum. Chamado a prestar contas, este homem dirá: Eu e o meu boi dormimos debaixo do mesmo tecto. O viajante, de cada vez que dá com realidades assim, sente-se muito comprometido. Amanhã, chegando à cidade, lembrar-se-á destes casos? E se se lembrar, como se lembrará? Estará feliz? Ou infeliz? Ou tanto disto como daquilo? É muito bonito, sim senhores, pregar sobre a fraternidade dos peixes. E a dos homens? Enfim, a igreja é esta. Não caiu em exagero quem a gabou. Cá nestas alturas, com os ventos varredores, sob o cinzel do frio e da soalheira, o templozinho resiste heroicamente aos séculos. Quebraram-se-lhe as arestas, perderam feição as figuras representadas na cachorrada a toda a volta, mas será difícil encontrar maior pureza, beleza mais transfigurada. A igreja de Adeganha é coisa para ter no coração, como a pedra amarela de Miranda». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,