«E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?» In Almeida Garrett
«O
que mais há na terra, é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem sempre
sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, porquanto a
paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e apesar disso, de tanto existir, não
se acabou ainda. Será porque constantemente muda: tem épocas no ano em que o chão
é verde, outras amarelo, e depois castanho, ou negro. E também vermelho, em
lugares, que é cor de barro ou sangue sangrado. Mas isso depende do que no chão
se plantou e cultiva, ou ainda não, ou não já, ou do que por simples natureza
nasceu, sem mão de gente, e só vem a morrer porque chegou o seu último fim.
Não é tal o caso do trigo, que
ainda com alguma vida é cortado. Nem do sobreiro, que vivíssimo, embora por sua
gravidade o não pareça, se lhe arranca a pele. Aos gritos. Não faltam cores a
esta paisagem. Porém, nem só de cores. Há dias tão duros como o frio deles,
outros em que se não sabe de ar para tanto calor: o mundo nunca está contente,
se o estará alguma vez, tão certa tem a morte. E não faltam ao mundo cheiros,
nem sequer a esta terra, parte que dele é e servida de paisagem. Se no mato
morreu animal de pouco, certo que cheirará ao podre do que morto está. Quando
calha estar quieto o vento, ninguém dá por nada, mesmo passando perto. Depois
os ossos ficam limpos, tanto lhes faz, de chuva lavados, de sol cozidos, e se
era pequeno o bicho nem a tal chega porque vieram os vermes e os insectos
coveiros e enterrara-no.
É uma terra ainda assim grande,
se formos comparar, primeiro em corcovas, alguma água de ribeira, que a do céu
tanto lhe dá para faltar como para sobejar, e para baixo desmaia-se em terra
fita, lisa como a palma de qualquer mão, ainda que muitas destas, por fado de
vida, tendam com o tempo a fechar-se, feitas ao cabo da enxada e da foice ou
gadanha. A terra. Também como palma de mão coberta de linhas e caminhos, suas
estradas reais, mais tarde nacionais, senão só da senhora câmara, e três
manifestas são elas aqui porque três é número poético, mágico e de igreja, e
todo o mais deste destino está explicado nas linhas de ir e voltar, carris de pé
descalço e mal calçado, entre torrões ou mato, entre restolho ou flor brava,
entre o muro e o deserto. Tanta paisagem. Um homem pode andar por cá uma vida
toda e nunca se achar, se nasceu perdido. E tanto lhe fará morrer, chegada a
hora. Não é coelho ou gineto para apodrecer ao sol, mas imaginando que a fome,
ou o frio, ou o calor o deitem a terra onde não deram por ele, ou uma doença
daquelas que não dão sequer o tempo de pensar nisso, menos ainda de chamar alguém,
mesmo tarde o hão-de achar.
De guerra e outras pestes se
morreu muito neste e mais lugares da paisagem, e no entanto quanto por aqui se
vai vendo são vivos: há quem defenda que só por mistério insondável, mas as razões
verdadeiras são as deste chão, deste latifúndio que por corcova de cima e
plaino de baixo se alonga, aonde os olhos chegam. E se deste não é, doutro há-de
ser, que a diferença só a ambos importa, pacificado o teu e o meu: tudo em
tempo devido e conveniente se registou na matriz, confrontações a norte e a
sul, a nascente e a poente, como se tal houvesse sido decidido desde o princípio
do mundo, quando tudo era paisagem, com alguns bichos grandes e poucos homens
de longe em longe, e todos assustados. Por esse tempo, e depois, se resolveu o
que o futuro haveria de ser, por que vias retorcidas da mão, este presente
agora de terra talhada entre donos do cutelo e consoante o tamanho e o ferro ou
gume do cutelo. Por exemplo: senhor rei ou duque, ou duque depois real senhor,
bispo ou mestre da ordem, filho direito ou de saborosa bastardia, ou fruto de concubinato,
nódoa assim lavada e honrada, compadre por filha manceba, e também o outro condestável,
meio remo por contado, e algumas vezes amigos meus esta é a minha terra, tomai-a,
povoai-a para meu serviço e vosso prol, guardada de infiéis e outras inconformações.
Livro de santíssimas horas, magníficas, e de sacratíssimas contas trazidas ao
paço e ao mosteiro, rezadas nos térreos palácios ou torres de segurança, cada
moeda um padre-nosso, às dez ave-maria, chegando a cem salve-rainha, maria é
rei. Profundas arcas, tulhas abissais, celeiros como naus da Índia, dornas e
tonéis, arcas senhora minha, tudo isto medido em côvados, varas e alqueires, em
almudes, moios e canadas, cada terra com seu uso.
Correram assim os rios, quatro
estações pontuais por ano, que essas estão certas, mesmo variando. A grande
paciência do tempo, e outra, não menor, do dinheiro, que, tirante o homem, é a
mais constante de todas as medidas, mesmo como as estações variando. De cada
vez, sabemos, foi o homem comprado e vendido. Cada século teve o seu dinheiro,
cada reino o seu homem para comprar e vender por morabitinos, marcos de ouro e
prata, reais, dobras, cruzados, réis, e dobrões, e florins de fora. Volátil
metal vário, aéreo como o espírito da flor ou o espírito do vinho: o
dinheiro sobe, só para subir tem asas, não para descer. O lugar do dinheiro
é um céu, um alto lugar onde os santos mudam de nome quando vem a ter de ser,
mas o latifúndio não.
Madre de tetas grossas, para
grandes e ávidas bocas, matriz, terra dividida do maior para o grande, ou mais
de gosto ajuntada do grande para o maior, por compra dizemos ou aliança, ou de roubo
esperto, ou crime estreme, herança dos avós e meu bom pai, em glória estejam.
Levou séculos para chegar a isto, quem duvidará de que assim vai ficar até à
consumação dos séculos? E esta outra gente quem é, solta e miúda, que veio com
a terra, embora não registada na escritura, almas mortas, ou ainda vivas? A
sabedoria de Deus, amados filhos, é infinita: aí está a terra e quem a há-de
trabalhar, crescei e multiplicai-vos. Crescei e multiplicai-me, diz o latifúndio.
Mas tudo isto pode ser contado doutra maneira». In José Saramago, Levantado do
Chão, Editorial Caminho, 1980, ISBN 978-972-212-236-8.
Cortesia de ECaminho/JDACT
JDACT, José Saramago, Nobel, A Arte da Escrita,