Tentações do Demónio
«(…) Vai a estrada em seu sossego
de curva e contracurva, ora desce, ora sobe, e na encosta de lá vêem-se melhor
as casas, até elas condizem com a paisagem. Não são ermos estes lugares. Tempo
houve, antiquíssimo, em que estas montanhas de xisto teriam sido assustadoras e
eriçadas massas, recozendo ao sol de Verão, ou varridas de cataratas de água
nos grandes temporais, imensas solidões minerais que nem para desterro
serviriam. Depois veio o homem e pôs-se a fabricar terra. Desmontou, bateu e
tornou a bater, fez como se esfarelasse as pedras entre as palmas grossas das mãos,
usou o malho e o alvião, empilhou, fez os muros, quilómetros de muros, e dizer
quilómetros será dizer pouco, milhares de quilómetros, se contarmos todos os
que por esse país foram levantados para segurar a vinha, a horta, a oliveira.
Aqui, entre Vila Real e Peso da Régua, a arte do socalco atinge a suma
perfeição, e é um trabalho que nunca está concluído, é preciso escorar, dar
atenção à terra que aluiu, à laje que deslizou, à raiz que fez de alavanca e
ameaça precipitar o muro no fundo do vale. Vistos de longe, estes homens e
estas mulheres parecem anões, naturais do reino de Lilipute, e afinal desafiam
em força as montanhas e mantêm-nas domesticadas. São gigantes pessoas, e isto
não passa de imaginações do viajante, que as tem pródigas, quando se está mesmo
a ver que têm os homens o seu tamanho natural, e basta.
O almoço é em Peso da Régua e
dele não ficou cheiro nem sabor para a memória. Ainda sentado à mesa, o
viajante consulta os seus grandes mapas, segue com um dedo decifrador o traçado
das estradas, e faz isto lentamente, é um prazer de criança que anda a
descobrir o mundo. Tem seus projectos, por esta margem do Douro até Mesão Frio,
mas de súbito vem-lhe uma grande saudade do caminho que ainda agora percorreu,
e a saudades assim que fará o viajante senão render-se? O mais que pôde fazer, e
com isso não perdeu, foi subir até Fontelas, e mais acima, entre as quintas,
vendo do alto os socalcos, o rio ao fundo, parando com uma grande paz na alma
diante dos pequenos e recolhidos solares, rústicos netos de Nasoni, arquitecto
santíssimo que a estas terras veio e nelas felizmente abundou em prole. Torna o
viajante a descer a Peso da Régua, atravessa a vila sem parar, e é um viajante
atormentado de dúvida, que tanto tem na vontade subir até Vila Real como ficar
pelas encostas de Fontelas e Godim, entre os muros, batendo aos portões das
quintas como os garotos e fugindo ao ladrar dos cães. Santa vida.
Facilmente
se compreende que o viajante vai em recordações da sua própria infância passada
noutras terras, e dessa distracção acorda por alturas de Lobrigos: uma vez mais
pasmado diante dos vinhedos, sem dúvida é esta a oitava maravilha do mundo.
Passa Santa Marta de Penaguião, Cumeeira, até Parada de Cunhos, e aí, voltando
costas ao rio Corgo, enfrenta o Marão. Parece a seca enunciação de um
itinerário, e é, pelo contrário, um grande passo na vida do viajante.
Atravessar a serra do Marão, qualquer o pode fazer, mas quando se sabe que
Marão significa Casa Grande, as coisas ganham o seu aspecto verdadeiro, e o
viajante sabe que não vai apenas atravessar uma serra mas entrar numa casa. Que
faz qualquer visitante ao entrar? Tira o chapéu, se o usa, baixa ligeiramente a
cabeça, se a traz ao léu, dá, enfim, as devidas mostras de respeito. Este
viajante torna-se visitante, e entra, depois de convenientemente lavada a alma,
como no capacho se limpam os pés». In José Saramago, Viagem a Portugal,
1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,