domingo, 23 de abril de 2023

A Cruz de Esmeraldas. Cristina Torrão. «Diz lá, o que se passa? Eu sei que mal podes esperar para seguir viagem... Bem o podes dizer... conquanto sobrevivamos a esta história! Johann respirou fundo e anunciou: Não irei contigo!»

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«(…) Mas não terás febre? Com a fome que tenho?! Os outros riram-se aliviados. Muitas vezes, uma ferida aparentemente inofensiva poderia conduzir à morte, caso infectasse, alastrando o seu veneno a todo o corpo. Ausenda mexia com uma colher de pau o conteúdo de uma panela de ferro de três pernas pousada à beira do lume e Konrad perguntou: O Tomé tornou a mandar-nos sopa? Sim, respondeu a rapariga, com toucinho. Cheira tão bem! Já comiam, quando Konrad comentou: Mais uma mina que falhou. Quem haveria de dizer que os mouros resistiriam tanto tempo?, replicou Gunther. E hoje não deram só cabo do nosso túnel, acrescentou Nadwig. Também neutralizaram um ataque português à alcáçova. É mesmo?, admirou-se Konrad. Os portugueses tornaram a trepar às muralhas? Não, respondeu Johann. Desta vez atacaram a porta perto da torre da cisterna. E o que é que falhou? Ainda não sabemos, respondeu Hadwig. Mas, ou muito me engano, ou os nossos dois amigos nos virão informar, depois da ceia.

Assim aconteceu. Julião, e Tomé vinham agitados, clamando que naquele dia tinha morrido um herói! Contaram uma história curiosa sobre um grupo de portugueses que, ao notarem que os mouros tentavam fazer uma surtida pela porta da alcáçova, os atacaram. Ao verem-se descobertos, os muçulmanos logo regressaram ao seu refúgio. E preparavam-se para fechar a porta, quando um cavaleiro português, de nome Martim Moniz, não se conformando com o desfecho da refrega, se precipitou sozinho para o meio dos infiéis. Ao mesmo tempo que lutava com uma horda deles, assim contavam Julião e Tomé, atravessou-se na porta, impedindo que esta se fechasse e permitindo que alguns dos seus companheiros entrassem na alcáçova...

Acabou por morrer esmagado. E os portugueses que já haviam entrado não tiveram muito melhor sorte. O seu acto, porém, juravam Julião e Tomé, servia de exemplo a todos os guerreiros. Os dois estavam convencidos de que, durante todo o cerco, ainda não tinha havido um herói como Martim Moniz!

A Konrad, que naquele dia também enfrentara perigos, salvando vários companheiros da morte certa, não lhe apetecia continuar a ouvir os elogios com que os dois portugueses enchiam o tal cavaleiro. Sentindo-se com forças, depois de matar a fome, levantou-se, lançou a sua capa pelos ombros e, com o punhal enfiado no cinto, caminhou até à margem do rio. Preparava-se para se sentar na areia, quando olhou para a sua direita. Archotes iluminavam o cimo das muralhas, junto à Porta de al-hammã.

De novo atingido por aquela atracção estranha, foi-se aproximando da cidade. Apercebia-se dos movimentos das sentinelas mouras, mas a escuridão à sua volta impedia que o inimigo o descobrisse. Quando se encontrava a uns cinquenta passos de distância da Porta de al-hammã, sentou-se no chão.

Apesar de, ao contrário dos seus companheiros, não acreditar no tesouro subterrâneo, não se conseguia livrar do pressentimento de que esta cidade tinha algo de importante para lhe oferecer. Tinha quase a certeza de que um dia atravessaria uma das portas de Lusbuna, a fim de encontrar algo que lhe pertenceria! Mas o quê? Esta ideia era tão absurda, porquanto ele considerava este cerco uma perda de tempo que o impedia de alcançar a Terra Santa.

Nesta noite, sentado sozinho no meio da escuridão, estes pressentimentos iam ainda mais longe: algo lhe dizia que ele não mais deixaria Portugal! Os cabelos da nuca arrepiaram-se-lhe, pois só encontrava uma explicação para isso: acabaria no cemitério dos cruzados alemães e flamengos, na colina a leste de Lusbuna!

Ouviu passos atrás de si e pôs-se de pé num salto, enquanto desembainhava o punhal. Mas deparou apenas com Johann. Que estranho o rapaz vir ter com ele! À noite, não se separava nunca da sua amada Ausenda. Preciso de falar contigo, anunciou Johann, de olhos postos no chão. Desconfiado, Konrad tomou a sentar-se, no que foi seguido pelo irmão. Esperava pelas palavras do rapaz, mas este emudeceu, enquanto fazia desenhos na areia com um pauzito. Ausenda ter-se-ia queixado? Konrad amaldiçoou-se por aquele seu momento de fraqueza. A última coisa que pretendia, seria causar um desgosto ao Johann. Mas responderia pelo seu acto e, como o rapaz não se resolvia a falar, ele decidiu encorajá-lo:

Diz lá, o que se passa? Eu sei que mal podes esperar para seguir viagem... Bem o podes dizer... conquanto sobrevivamos a esta história! Johann respirou fundo e anunciou:  Não irei contigo! Que estás para aí a dizer? O rapaz pousou finalmente os olhos castanho-claros nos do irmão e insistiu: Ficarei aqui. Depois de uma curta hesitação, Konrad inquiriu: Mas porquê? Disse ou... fiz alguma coisa que te aborrecesse? Johann olhou-o cheio de espanto: Tu? Não, que ideia. Tem mais a ver com a Ausenda. Pensei em levá-la comigo, mas... A viagem seria perigosa demais para ela...

Perigosa? Ela é magrinha, mas rija. É das poucas pessoas em todo o acampamento que ainda não teve que se ver com uma diarreia das fortes. Não me deixaste acabar. Ela... está prenhe!» In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

 

Cortesia de Ésquilo/JDACT

 

JDACT, Cristina Torrão, História, Cultura e Conhecimento, Lisboa,