sábado, 29 de abril de 2023

Viagem a Portugal. José Saramago. «E este vale, como explicar o que ele é? A estrada vai andando às curvas, por entre montes e montanhas, e é a costumada formosura, nem o viajante espera mais do que tem»

                                                        

jdact e cortesia de wikipedia

Os Animais Apaixonados

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Os Animais Apaixonados

«(…) Felgueiras já ficou para trás, e aí adiante é Pombeiro de Ribavizela, um mosteiro arruinado, triste como só os mosteiros em ruínas conseguem ser. São cinco horas da tarde, o dia vai escurecendo, e o viajante cai em grande melancolia. A igreja, por dentro, é húmida e fria, há manchas nas paredes onde a água das chuvas se infiltrou, e as lajes do chão estão, aí e além, cobertas de limo verde, mesmo as da capela-mor. Ouvir aqui missa deve valer uma indulgência geral com efeitos pretéritos e futuros. Mas o assombro do viajante atinge extremos quando a mulher da chave lhe diz que na missa das sete da manhã é que a afluência é grande, vem gente de todos os lugares próximos. Sob a capa fria e húmida da atmosfera, o viajante arrepia-se: que será isto pelos grandes frios e dilúvios do Inverno? Quando vai a sair, a mulher aponta-lhe as arquetas tumulares que ali estão, de um lado e outro da porta. Um é o Velho, o outro é o Novo», diz. O viajante vai certificar-se. Os túmulos são do século XIII. Um deles representa Gomes de Pombeiro na tampa e deve conter-lhe os ossos. Esse é o Velho. Porém, o Novo, quem será? Não o sabe dizer a mulher da chave. Então, o viajante aceita sem discutir o que a sua própria imaginação lhe propõe: o outro túmulo é também de Gomes de Pombeiro, feito quando, mancebo e vivíssimo rapaz, recebeu grave ferimento em batalha, de que felizmente escapou. Fez-se o túmulo para escarmento e Gomes de Pombeiro esperou pela velhice para ir descansar ao lado da sua própria imagem quando moço. É um imaginado tão bom como qualquer outro, mas o viajante não fez dele confidência à mulher da chave, pois ela merece outro respeito que este brincar com os mortos, tanto mais que não terá túmulo de pedra nem estátua jazente, e se a tivesse haveria de merecer a sua dupla imagem, a Nova que foi, e a Velha que é de amargoso luto e face sucumbida. Fecha a mulher a igreja com a grande chave e retira-se para as ruínas do convento, onde mora. O viajante olha a altíssima fachada, a grande rosácea, compraz-se alguns minutos no híbrido mas formoso portal. A tarde morre mesmo, já não há quem segure este dia.

Quando o viajante entra em Guimarães, os candeeiros estão acesos. Dormirá numa água-furtada com vista para a Praça do Toural. Sonha com o Velho e o Novo, vê-os a caminhar pela estrada que vai de Pombeiro a Telões, ouve o duro pisar dos seus pés de pedra, e está com eles diante do altar das almas, olhando todos os três a bela condenada, aquecendo enfim o corpo gelado naquela fogueirinha que nem S. Miguel pode apagar.

O viajante acorda já de manhã clara. Não gosta do sonho que teve, não é nenhum dom João para assim lhe aparecerem convidados de pedra, e decide cortar cerce nas imaginações para não vir a perder o sono. Toma um café que mais eficazmente cobrirá as suas negruras interiores, e sai à rua a farejar os ares. Tempo instável, sol apenas por metade, mas luminoso quando aparece. Ao viajante não agrada ficar na cidade. Logo tornará a ela, mas neste momento o que lhe apetece é voltar aos grandes horizontes. Por isso decide seguir para as terras de Basto, nome pelos vistos de muito requestamento, pois só Basto há três, duas são as Cabeceiras, e ainda temos Mondim e Celorico, Canedo e Refojos, tudo de Basto, com muita honra. O viajante viu estes casos pelo mapa, não lhe impõe o seu roteiro que por todos aqueles lugares passe, mas, tendo observado a abundância, mal parecia que não registasse. Poucos quilómetros adiante de Guimarães é Arões. Lástima tem o viajante de que uma linha de palavras não seja uma corrente de imagens, de luzes, de sons, de que entre elas não circule o vento, que sobre elas não chova, e de que, por exemplo, seja impossível esperar que nasça uma flor dentro do o da palavra flor. Vem isto tão a propósito de Arões como de qualquer outro lugar, mas como a paisagem é esta beleza, como a igreja matriz é este românico, tem o viajante este desabafo. Mesmo agora sentiu o cheiro das folhas molhadas e não sabe onde está a palavra que devia exprimir esse cheiro, essa folha e essa água. Uma só palavra para dizer tudo isto, já que muitas não o conseguem.

E este vale, como explicar o que ele é? A estrada vai andando às curvas, por entre montes e montanhas, e é a costumada formosura, nem o viajante espera mais do que tem. Então, aqui, num ponto entre Fafe e Cabeceiras de Basto, numa volta da estrada, o viajante tem de parar, e na página mais clara da sua memória vai pôr a grande extensão que os seus olhos vêem, os planos múltiplos, as cortinas das árvores, a atmosfera húmida e luminosa, a neblina que o sol levanta do chão e perto do chão se dissipa, e outra vez árvores, montes que vão baixando e depois tornam a erguer-se, ao fundo, sob um grande céu de nuvens. O viajante está cada vez mais crente de que a felicidade existe». ». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

 

Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,

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