jdact e cortesia de wikipedia
Os Animais Apaixonados
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Os Animais Apaixonados
«(…) Felgueiras já ficou para trás, e aí adiante é Pombeiro de
Ribavizela, um mosteiro arruinado, triste como só os mosteiros em ruínas
conseguem ser. São cinco horas da tarde, o dia
vai escurecendo, e o viajante cai em grande melancolia. A igreja, por dentro, é
húmida e fria, há manchas nas paredes onde a água das chuvas se infiltrou, e as
lajes do chão estão, aí e além, cobertas de limo verde, mesmo as da capela-mor.
Ouvir aqui missa deve valer uma indulgência geral com efeitos pretéritos e
futuros. Mas o assombro do viajante atinge extremos quando a mulher da chave
lhe diz que na missa das sete da manhã é que a afluência é grande, vem gente de
todos os lugares próximos. Sob a capa fria e húmida da atmosfera, o viajante
arrepia-se: que será isto pelos grandes frios e dilúvios do Inverno? Quando vai
a sair, a mulher aponta-lhe as arquetas tumulares que ali estão, de um lado e
outro da porta. Um é o Velho, o outro é o Novo», diz. O viajante vai
certificar-se. Os túmulos são do século XIII. Um deles representa Gomes de Pombeiro na tampa e deve
conter-lhe os ossos. Esse é o Velho. Porém, o Novo, quem será? Não o sabe dizer
a mulher da chave. Então, o viajante aceita sem discutir o que a sua própria
imaginação lhe propõe: o outro túmulo é também de Gomes de Pombeiro, feito
quando, mancebo e vivíssimo rapaz, recebeu grave ferimento em batalha, de que
felizmente escapou. Fez-se o túmulo para escarmento e Gomes de Pombeiro esperou
pela velhice para ir descansar ao lado da sua própria imagem quando moço. É um
imaginado tão bom como qualquer outro, mas o viajante não fez dele confidência
à mulher da chave, pois ela merece
outro respeito que este brincar com os mortos, tanto mais que não terá túmulo
de pedra nem estátua jazente, e se a tivesse haveria de merecer a sua dupla
imagem, a Nova que foi, e a Velha que é de amargoso luto e face sucumbida.
Fecha a mulher a igreja com a grande chave e retira-se para as ruínas do
convento, onde mora. O viajante olha a altíssima fachada, a grande rosácea,
compraz-se alguns minutos no híbrido mas formoso portal. A tarde morre mesmo,
já não há quem segure este dia.
Quando o viajante entra em Guimarães, os candeeiros estão
acesos. Dormirá numa água-furtada com vista para a Praça do Toural. Sonha com o
Velho e o Novo, vê-os a caminhar pela estrada que vai de Pombeiro a Telões,
ouve o duro pisar dos seus pés de pedra, e está com eles diante do altar das
almas, olhando todos os três a bela condenada, aquecendo enfim o corpo gelado
naquela fogueirinha que nem S. Miguel pode apagar.
O viajante acorda já de manhã clara. Não gosta do sonho que
teve, não é nenhum dom João para assim lhe aparecerem convidados de pedra, e
decide cortar cerce nas imaginações para não vir a perder o sono. Toma um café
que mais eficazmente cobrirá as suas negruras interiores, e sai à rua a farejar
os ares. Tempo instável, sol apenas por metade, mas luminoso quando aparece. Ao
viajante não agrada ficar na cidade. Logo tornará a ela, mas neste momento o
que lhe apetece é voltar aos grandes
horizontes. Por isso decide seguir para as terras de Basto, nome pelos vistos
de muito requestamento, pois só Basto há três, duas são as Cabeceiras, e ainda
temos Mondim e Celorico, Canedo e Refojos, tudo de Basto, com muita honra. O
viajante viu estes casos pelo mapa, não lhe impõe o seu roteiro que por todos
aqueles lugares passe, mas, tendo observado a abundância, mal parecia que não
registasse. Poucos quilómetros adiante de Guimarães é Arões. Lástima tem o
viajante de que uma linha de palavras não seja uma corrente de imagens, de
luzes, de sons, de que entre elas não circule o vento, que sobre elas não
chova, e de que, por exemplo, seja impossível esperar que nasça uma flor dentro
do o da
palavra flor. Vem isto tão a propósito de Arões como de qualquer outro lugar,
mas como a paisagem é esta beleza, como a igreja matriz é este românico, tem o
viajante este desabafo. Mesmo agora sentiu o cheiro das folhas molhadas e não
sabe onde está a palavra que devia exprimir esse cheiro, essa folha e essa
água. Uma só palavra para dizer tudo isto, já que muitas não o conseguem.
E este vale, como explicar o que ele é? A estrada vai
andando às curvas, por entre montes e montanhas, e é a costumada formosura, nem
o viajante espera mais do que tem. Então, aqui, num ponto entre Fafe e Cabeceiras
de Basto, numa volta da estrada, o viajante tem de parar, e na página mais
clara da sua memória vai pôr a grande extensão que os seus olhos vêem, os planos múltiplos, as
cortinas das árvores, a atmosfera húmida e luminosa, a neblina que o sol levanta
do chão e perto do chão se dissipa, e outra vez árvores, montes que vão
baixando e depois tornam a erguer-se, ao fundo, sob um grande céu de nuvens. O
viajante está cada vez mais crente de que a felicidade existe». ». In
José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão
2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,
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