«(…) Afonso respirou fundo, a olhar o vazio. Não teria nada a acrescentar naquele momento. A incerteza tomara conta do rei. Bem sabia que a ausência de resposta representava grande risco para um reino pequeno, preso entre o mal e vizinhos poderosos. Com o desmoronar das alianças com que julgara garantir a paz para se entregar ao desenvolvimento interno do reino, as fronteiras de Portugal voltavam a tomar lugar cimeiro no seu governo. Era, pela graça de Deus, rei de Portugal e do Algarve, inteiramente tomado aos mouros havia muitas décadas. Desde que subira ao trono, Afonso IV tentava manter â neutralidade portuguesa, sabedor de que as guerras não eram compatíveis com o progresso de um reino. E o soberano tinha ambições: enriquecer Portugal pelo comércio e pela agricultura, sem esquecer a organização e as leis, sempre cimeiras. Mas a ameaça moura não desaparecera, o reino de Granada não deixava esquecer aos monarcas ibéricos que o poder sarraceno se mantinha ainda dentro de portas. O Norte de África unia-se no desafio aos reinos cristãos, e informadores do rei alertavam para a cobiça do sultão de Marrocos, que crescia em poderio e armas. Que se unissem o sultão e o rei de Granada para invadir toda a Península não era risco que se pudesse ignorar. Afonso XI de Castela não tinha tréguas e eram constantes as escaramuças com o vizinho mouro.
O perro de Castela esmifra-se para
afastar a moirama, lançou Afonso, com um sorriso de prazer. Talvez um sabre lhe
arranque a cabeça dos ombros. Beatriz fitou-o com horror. Tento, senhor! O ódio
não serve a ninguém. O rei lançou uma gargalhada roufenha, o olhar fixo no
punho cerrado que esfregava na palma da mão. E menos serve a Deus, que apela à união
dos cristãos, insistiu Beatriz, sem descolar os olhos do marido.
O sobrinho castelhano
escrevera-lhe, queixando-se da falta de auxílio do rei de Portugal, seu sogro,
que preferia manter-se distante de guerras, não vendo ganhos para o seu reino
no enviar de homens para defender as fronteiras de Afonso XI. O soberano não
respondeu. Mas Beatriz notou que afrouxou a fúria com que castigava as mãos. Afonso
deixou o silêncio alastrar enquanto se tolhia em pensamentos sombrios. O sonho de
se manter arredado das pelejas das terras vizinhas começava a parecer-lhe ilusório,
pela primeira vez. Sem mais herdeiros do que Pedro e a filha casada com o tirano
de Castela com quem julgara ter feito boa aliança, Afonso IV dava graças pela relativa
acalmia que regressara aos grandes senhores do reino de Portugal, a quem fizera
frente nos primeiros anos do seu reinado. Para lhes travar os abusos e consolidar
o poder real. Ganhara inimigos, até entre o clero, ao exigir prova escrita das honras
e terras que haviam acumulado em reinados anteriores, seguindo um rigor que se iniciara
com seu pai, Dinis.
Para ajudar à conquista de Portugal
aos mouros, os seus antepassados haviam aliciado a nobreza com mercês e senhorios
onde impunham a lei como se fossem o próprio monarca... Decidido a controlar os
poderosos do reino, Afonso IV ordenara um chamamento geral de nobres e religiosos,
de lés a 1és, vergando aristocratas e bispos, para que se prostrassem em obediência
ao soberano e jamais ousassem esquecer que o senhorio do monarca era todo o reino
de Portugal. Mais do que nunca preciso da nobreza unida, desabafou finalmente, fitando
Lopo Fernandes Pacheco. O outro assentiu, com uma náusea íntima». In
Isabel Machado, Constança, A Princesa traída por Pedro e Inês, 2015, A Esfera
dos Livros, 2015, ISBN 978-989-626-718-6.
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