O Homem de Constantinopla
«(…)
Candeeiro? Óleo mineral?, balbuciou a mulher, papagueando as palavras
novas. O que é isso? Vahan desatarraxou o objecto, separando o vidro da parte
metálica. Já vos mostro, disse, expondo o interior da base metálica. Estão a
ver este líquido aqui? A mulher e o filho inclinaram os rostos e espreitaram o
líquido. Tratava-se de uma solução amarelada que libertava um cheiro forte e
enjoativo, repugnante até. É isso o óleo mineral? Chamam-lhe querosene,
explicou o marido. Olhem para este fio de algodão, estão a ver? Cai sobre o
tanque, de modo a empapar-se de querosene. A extremidade fica cá em cima.
Querem ver o que vai acontecer agora? O marido tirou o charuto da boca e colou
a ponta incandescente ao fio branco. Uma chama azulada irrompeu na extremidade
do fio e pôs-se a brilhar com vigor inusitado, bailando em silêncio como um
farol longínquo, o que arrancou expressões de espanto e maravilha na sala. Oh!
Vahan pegou na estrutura de vidro e atarraxou-a à base metálica,
reconstituindo o objecto original. Esta parte envidraçada serve para proteger a
chama, explicou ao completar a tarefa. Ergueu o candeeiro como se ele fosse um
troféu. Com esta invenção deixamos de precisar de velas de cera nesta casa,
ouviram? Credo, homem! E o fumo? Fumo? Qual fumo? Esta lâmpada não liberta fumo
nem cheiro, mulher. Além disso tem uma luz mais forte do que a das velas. Olhem
para isto! Aproximou a lâmpada de um canto escuro da sala para fazer a
demonstração. Estão a ver? Maravilha de luz, hem? É o progresso que chega a
esta casa, minha gente! O progresso! A novidade a todos maravilhou, incluindo
aos criados, que acorreram para testemunhar o advento do progresso anunciado
pela chama azul que o funil envidraçado irradiava, como se a luz trémula
encerrasse o oráculo de um futuro radioso.
O teu marido ainda não te contou tudo, disse Grigoris, quebrando o mutismo.
Falta a grande novidade. Há mais?, admirou-se Veron, descolando enfim os olhos
hipnotizados do lume ondulante. Trouxeram mais inventos de Constantinopla? O
dono da casa fez um sinal aos criados e todos se retiraram ordeiramente. A
grande novidade, revelou quando ficaram a sós, é um negócio que me propôs Salim
Bey. Quem? O consultor do sultão? Esse mesmo, confirmou Vahan. Como sabes vou
sempre almoçar com ele quando estou em Constantinopla. É um bom amigo, o Salim
Bey. Pudera!, soltou Veron com uma ponta de veneno a apimentar-lhe a língua.
Com todos os tapetes que já lhe ofereceste! E isto sem falar no bakshish! O
homem deve estar rico à nossa custa!
E nós à dele!, corrigiu o marido, endurecendo a expressão do rosto e
apimentando as palavras com a dose certa de rispidez. Não te esqueças, mulher,
de que foi ele quem introduziu os nossos tapetes no palácio! A custa disso, a
clientela centuplicou! Agora toda a gente quer a nossa mercadoria! Tornámo-nos
abastecedores do palácio e essa é a melhor publicidade que existe por todo o
império. Não devemos por isso cuspir na mão que nos alimenta. É verdade,
admitiu a senhora da casa, que na verdade não se podia queixar dos benefícios
conquistados à custa daquela amizade mutuamente interessada. Agora até o sultão
pisa os nossos tapetes. E foi a conselho de Salim Bey, é bom não o esquecer,
que o sultão me fez vali de Trebizonda e me entregou a colecta de impostos na
Mesopotâmia.
Em troca de muito bakshish ... Não
interessa! Fez um gesto em redor, como se indicasse a casa. Se temos tudo isto,
também a Salim Bey o devemos, nunca é de mais lembrá-lo! O bakshish é a justa
retribuição por tantos favores que lhe devemos! Veron baixou a cabeça. Tens
razão. Uma vez a mulher disciplinada e a sua autoridade restabelecida, Vahan
respirou fundo e readquiriu a compostura senhorial. Não era habitual tais
assuntos serem discutidos com mulheres, mas ele já se acostumara a confiar no
juízo de Veron naquelas situações. O diabo da mulher parecia que tinha um faro
especial para os negócios e parvo seria ele se não lhe buscasse conselho. Pois
o bom do Salim Bey veio oferecer-me o negócio do querosene, anunciou. Exclusivo
para o palácio do sultão». In José Rodrigues Santos, O Homem de Constantinopla,
Edições Gradiva, 2013, ISBN 978-989-616-549-9.
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