sábado, 22 de abril de 2023

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «Olhem que coisa mais esquisita! Levaram a minha bolsa e deixaram isso aí. Parece coisa de feitiçaria. A porta estava semi-aberta e o inspector examinou o carro, não dando muita importância às reclamações da mulher…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) No românico, o homem fica na escuridão e Deus desce até ele. No gótico, é o homem que se eleva até à presença de Deus, através da luz que inunda o ambiente. O que será que poderia estar por trás dessa pregação?, pensou Maurício, olhando no alto do morro o pequeno vilarejo de Obanos.

Obanos foi palco de um dos mais tristes episódios da história do Caminho. Por coincidência, naquele dia, o vilarejo fazia uma representação teatral do misterioso drama dos irmãos Felícia e Guilherme, filhos do duque de Aquitânia. Eis aí outro mistério inacessível do passado, voltou o inspector, com suas infelizes explicações. A Igreja transformou assassinos em santos e deu a reis poderes para governar os céus, canonizando muitos deles. O assassinato de Felícia pelo seu irmão é outra curiosidade. Se ele fosse um plebeu, seria enforcado, mas Guilherme era o poderoso duque de Aquitânia e, então, virou santo.

Depois de peregrinar a Santiago, Felícia abdicou das riquezas, preferindo ficar em Obanos para se dedicar aos pobres e aos peregrinos. Seu irmão Guilherme tentou convencê-la a voltar para se ocupar do palácio, mas diante da resistência da irmã ficou tão indignado, que a degolou, num gesto impensado do qual se arrependeu. Cheio de remorsos, fez a peregrinação e mandou construir a Ermida de Arnotegui, perto de Obanos, conhecida como Ermida de São Guilherme. Felícia foi santificada e seu túmulo fica na cidade de Labiano, nas imediações de Pamplona. Guilherme passou o resto dos seus dias acudindo peregrinos e ajudando os pobres.

Chegaram ao centro da cidade onde dois enormes bonecos na frente da igreja simbolizavam Felícia e Guilherme. Entraram num bar, tomaram água e café e descansaram um pouco para continuar até a ermida de Nossa Senhora de Eunate. Quem vem de Roncesvalles, precisa andar mais uns três quilómetros até esse misterioso templo cuja visita é obrigatória.

O Caminho tem dois pontos de origem. Um deles é a cidade de Saint-Jean-Pied-de-Port, onde começa o chamado Caminho francês, que passa por Roncesvalles; o outro é o alto de Somport, de onde sai o Caminho aragonês, assim chamado por causa do rio Aragão. Em Puente la Reina, os dois se encontram e o Caminho continua num único trajecto. Na peregrinação anterior, Maurício tinha tomado um táxi em Puente la Reina para voltar a Somport e fazer também esse trajecto a pé, mas agora não estava disposto a tanto.

Já eram duas horas daquela tarde de sol inclemente e sentia-se reconfortado por estar equipado de óculos escuros, mangas compridas e filtro solar nas partes expostas, apesar de as plantas dos pés arderem sobre o solo quente.

A igreja de Eunate, que em euskera significa cem portas, dá aos adeptos do esoterismo razões para longos estudos. Sua arquitectura evoca mistérios do Além. Vestígios de construções anteriores mostram sucessivos elementos octogonais em volta de um ponto central e teria sido construída inicialmente como túmulo para uma misteriosa rainha que ninguém sabe de onde viera.

Sua estrutura é similar à do Santo Sepulcro, com o quadrado indicando a ordem terrestre e o círculo simbolizando a vida eterna, e por isso chamou a atenção dos iniciados em ciências secretas. Era impossível ver aquela construção e não se lembrar dos Cavaleiros Templários e sua lendária existência. O senhor está vendo aquela figura esquisita? Aquele é o bafomet. Figuras de seres estranhos rodeavam o beiral, e o inspector apontava para uma delas.

Veja o senhor que injustiça o papa fez com os templários. Eles foram os criadores do gótico a partir dos estudos que fizeram do Templo de Salomão e introduziram essas gárgulas como canaletas para escoamento de água. Para acusá-los, inventaram que o bafomet era o Diabo e que os templários o adoravam.

Maurício procurava ser cortês e o inspector entendia essa cortesia como uma demonstração de interesse. Ele dava voltas para chegar ao assunto principal, como se quisesse pegar o interlocutor de surpresa, e trouxe do fundo dos séculos um dos temas mais delicados da história do catolicismo. A Igreja não poupava os inocentes, quando eles ameaçavam o seu poder. Veja o que aconteceu com os cátaros. Eles eram considerados hereges apenas porque praticavam um cristianismo puro e por isso o papa lançou contra eles uma Cruzada, a chamada Cruzada Albigense. Sabe qual era o crime dos cátaros? Eles viviam bem no centro da peregrinação, em torno da cidade de Albi.

Acabaram de dar a volta da igreja e estavam diante da entrada principal, admirando a simetria da construção. O senhor vai passar por Estella. Não deixe de notar o erotismo disfarçado que brota da cena em que o Sagitário aponta sua flecha para o umbigo de uma sereia, na igreja de São Pedro de la Rua. Bafomet, umbigo de sereia, cátaros! O que estaria por trás dessas observações extemporâneas?, pensava Maurício, mas nesse momento uma senhora chegou correndo, assustada. Ela estacionara o carro para visitar a igreja e, quando voltou, o vidro à direita do motorista estava aberto e uma bolsa que tinha deixado no banco da frente desaparecera. O inspector se identificou e foram até ao veículo.

Olhem que coisa mais esquisita! Levaram a minha bolsa e deixaram isso aí. Parece coisa de feitiçaria. A porta estava semi-aberta e o inspector examinou o carro, não dando muita importância às reclamações da mulher, que se lamentava por ter ficado sem documentos e dinheiro. Em seguida, ligou pelo telemóvel para o posto policial mais próximo, o de Puente la Reina.

Maurício tinha ficado afastado porque era assunto para o inspector, mas a mulher abriu toda a porta para revistar melhor o carro, na esperança de encontrar a bolsa, e ele pôde ver os objectos que estavam no banco dianteiro do motorista». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT

 

JDACT, Santiago de Compostela, Cultura, AJ Barros, Literatura,