Kara
O meu
nascimento, 1974
«No
mundo inocente da minha mãe, baseado nos desenhos animados das manhãs de sábado,
os bebés, com faixas a dizerem o respectivo nome, flutuavam por cima de jardins
coloridos ao serem entregues por uma cegonha celestial. Lily Akens não tinha
motivos para duvidar da obstetrícia dos programas de televisão. O meu pai
adolescente, Mac Tolbert, sabia mais do que ela, pois muitas vezes auxiliava no
parto dos bezerros e dos potros em River Bluff, a quinta da sua família no
Norte da Florida, mas não sabia como explicar o processo à minha mãe. Além
disso, não tinha a certeza se os bebés humanos nasciam da mesma maneira que os
animais.
Só podia partir do princípio de
que o bebé saía pelo mesmo sítio por onde tinha entrado. Lily , L-Lily , não chchores,
gaguejou Mac, ajoelhando-se a seu lado, sem saber o que fazer, na escuridão pegajosa,
subtropical, enxotando os mosquitos que esvoaçavam no clarão trémulo da sua
lanterna. Os pinheiros altos baloiçavam por cima deles sob a brisa do pântano.
As rãs coaxavam no fundo dos ribeiros. Algures, fez-se ouvir um aligátor. As
florestas escuras da Florida interior respiram e falam durante a noite,
arrancando memórias misteriosas ao leito de calcário poroso. Embora longe de
ambos os oceanos, o ar traz um leve vestígio de água salgada.
Mas dói!, soluçou Lily. A sua
bata barata, às flores, estava ensopada em fluidos e amarrotada à volta das
ancas. Acho que é m-mesmo assim, disse-lhe Mac. T-talvez d-devas levantar-te. C-como
uma égua. Acho que não consigo! Oh, Mac! Dói tanto! Mac! Há qualquer coisa a querer
sair de mim lá por baixo! A tremer, Mac apontou a lanterna para o meio das
pernas dela. Os cavalos e os bezerros quando nasciam apresentavam em primeiro
lugar as patas da frente, como se estivessem a mergulhar no mundo. Mac olhou
com atenção mas não viu mãos de bebé, apenas o crânio ensanguentado de uma cabeça
minúscula. A visão aterrorizou-o, mas escondeu as emoções. Tinha de ser forte, por
Lily . Eles eram diferentes dos outros adolescentes; tomavam conta um do outro
desde a infância. É só o b-bebé.
Parecia mais confiante do que na
verdade se sentia. Sabia como dar a volta a um bezerro ou a um potro
atravessado, mas não se conseguia imaginar a enfiar a mão enorme dentro de Lily.
Mac! Está a mexer-se! Segurou-lhe nas mãos enquanto ela se sentava. Lily baloiçou-se
para trás e para a frente. Os calcanhares dos ténis dela rasgaram sulcos no
solo macio e húmido. Lily começou a gritar. Depois do que lhe pareceu uma
eternidade, calou-se e deixou-se cair contra Mac. O bebé caiu, gemeu ela. Porque
não está a flutuar? Deve ter alguma coisa errada. Oh, Mac... O meu pai apontou
de novo a lanterna para o meio das coxas dela. Ele e a minha mãe ficaram a
olhar, horrorizados. Nenhum deles tinha alguma vez visto uma criança recém-nascida.
Eu não era uma bonequinha engraçada ou um querubim sorridente. Estava quase
roxa. Tinha a cabeça amolgada. Um muco sanguinolento colava-me ao crânio uma
madeixa fina de cabelo ruivo. Abri a boca e engoli uma grande golfada de ar.
Para eles, o meu esforço parecia o arquejar de um moribundo.
Debruçaram-se sobre mim e choraram. Depois a luz de várias lanternas cortou a escuridão da floresta. O irmão mais velho de Mac, Glen, foi quem os encontrou primeiro. Que raio é que vocês fizeram?, perguntou. Mac e Lily soluçaram. Antes que pudessem segurar-me nos braços uma única vez, antes de se aperceberem de que eu estava viva e era normal, fui-lhes retirada. Só depois de adulta viria a saber da existência de Mac e Lily. Só depois de adulta viria a saber que eles me tinham feito vir ao mundo nas florestas da Florida. Só depois de adulta saberia que eles me desejavam. Era já adulta e órfã quando voltei a nascer na vida dos meus pais». In Deborah Smith, A Doçura da Chuva, Porto Editora, 2007, 2009, ISBN 978-972-004-189-0.
Cortesia de PortoE/JDACT
JDACT, Deborah Smith, Literatura,