«(…) Em algum ponto no passado, supôs-se, com base em interpretação especulativa, que Pilatos usara o título como zombaria. Supor outra coisa teria sido levantar muitas questões espinhosas. Hoje, a maioria dos cristãos aceita cegamente, como facto consumado, que Pilatos usou o título por escárnio. Mas isso não é de modo algum um facto estabelecido. Se lermos os próprios Evangelhos, sem nenhuma ideia preconcebida, não encontraremos nenhuma sugestão de que o título não foi usado com absoluta seriedade, de que não era perfeitamente legítimo e reconhecido como tal pelo menos por alguns dos contemporâneos de Jesus, entre os quais Pilatos. A julgar pelos próprios Evangelhos, Jesus pode de facto ter sido rei dos judeus, e/ ou assim considerado. Somente a tradição persuadiu as pessoas do contrário. Sugerir que Jesus pode realmente ter sido rei dos judeus não é, portanto, ir contra as evidências. É meramente divergir de uma tradição há muito estabelecida, um sistema de crenças há muito estabelecido, baseado em última análise na interpretação especulativa de alguém. Se alguma coisa vai contra as evidências é esse sistema de crenças. Pois, no relato que Mateus faz do nascimento de Jesus, os três magos perguntam: Onde está o Rei dos judeus que acaba de nascer? Se Pilatos pretendia usar o título a pretexto de zombaria, como podemos resolver a questão dos magos? Será que eles também o usavam por zombaria? Certamente não. No entanto, se estavam aludindo a um título legítimo, por que Pilatos não poderia ter feito o mesmo?
Os
Evangelhos são documentos de uma simplicidade chapada, mítica. Retratam um
mundo reduzido a uns poucos traços toscos, um mundo de carácter intemporal,
arquetípico, quase de conto de fadas. Mas a Palestina, quando do advento da era
cristã, não era um reino de faz-de-conta. Ao contrário, era um lugar
absolutamente real, povoado por pessoas reais, como poderíamos encontrar em
qualquer parte do mundo em qualquer outra época na história. Herodes não foi o
rei de uma lenda obscura. Foi um potentado muito real, cujo reinado (37- 4
a.C.) se estende além do contexto bíblico para coincidir no tempo com o de
figuras seculares bem conhecidas, como Júlio César, Cleópatra, Marco Antônio,
Augusto, por exemplo, e outros personagens que nos são familiares a partir dos
manuais escolares e até a partir de Shakespeare. Como dissemos, a Palestina no
século I, como qualquer lugar do mundo, estava sujeita a um complexo
emaranhado de factores sociais, psicológicos, políticos, económicos, culturais
e religiosos. Numerosas facções lutavam entre si e intestinamente. Complôs
manipulavam e maquinavam nos bastidores. Vários partidos perseguiam objectivos
conflitantes, muitas vezes fazendo frouxas alianças entre si com propósitos
meramente oportunistas. Tratos eram feitos na clandestinidade. Jogos de
interesses marcavam a luta pelo poder. O povo em geral, como o povo de qualquer
lugar e de outras épocas, oscilava entre o torpor apático e o fanatismo
histérico, entre o medo ignóbil e a convicção ardorosa. Muito pouco disso, ou
nada, é transmitido pelos Evangelhos, apenas um resíduo de confusão. No
entanto, essas correntes, essas forças, são essenciais para qualquer
compreensão do Jesus hist6rico, o Jesus que realmente palmilhou o solo da
Palestina 2 mil anos atrás, e não o Cristo da fé. Foi esse Jesus que nos
esforçamos por discernir e compreender mais claramente. Fazer semelhante
esforço não é declarar-se anticristão.
O
Contexto
Na esteira de O santo graal e a linhaaem sagrada, quando
certos cristãos nos acusaram com veemência de sermos anticristãos, só pudemos
dar de ombros, impotentes. Nós próprios, é preciso repetir, não tínhamos nenhum
desejo de assumir o papel de iconoclastas; fomos simplesmente apanhados no
conflito entre facto e fé. As sugestões que fizemos sobre Jesus tampouco nos
pareciam ter algo de chocante ou ultrajante. Como o leitor terá notado, praticamente
todas as sugestões tinham sido feitas antes, em sua maioria muito recentemente,
e foram bastante divulgadas. Além disso, não estávamos sozinhos. Não estávamos
maquinando uma tese excêntrica, temerária, feita sob medida para produzir um best-seller instantâneo. Ao
contrário, praticamente todas as nossas sugestões coincidiam muito com as
principais tendências dos estudos bíblicos contemporâneos, e era precisamente
nesses estudos que grande parte da nossa pesquisa tinha origem. Consultamos os
especialistas reconhecidos no campo, muitos dos quais não eram conhecidos pelo
grande público; e, no geral, pouco mais fizemos do que sintetizar suas
conclusões de uma maneira facilmente digerível. Essas conclusões já eram
bastante conhecidas pelos membros dos cleros, que em grande parte as aceitaram
prontamente. O que não conseguiram fazer foi, no entanto, transmiti-las aos
leigos.
Em discussões
privadas, tivemos contacto com sacerdotes de muitas religiões. Poucos
expressaram alguma hostilidade às conclusões do nosso livro. Alguns discordaram
de um ou outro ponto específico, mas a maioria julgou nossa tese geral
plausível, até provável em certos casos, e de modo algum desabonadora da
estatura de Jesus ou da fé cristã. A cristãos leigos, contudo, as mesmas conclusões
pareceram envolver blasfémia, heresia, sacrilégio, e quase todos os outros
pecados religiosos catalogados. Foi essa discrepância de reacção que nos
pareceu particularmente espantosa e instrutiva. Clérigos, de quem poderíamos
esperar uma atitude mais combativa nesse campo, reagiram com algo entre a
indiferença céptica mas não surpreendida e o
endosso completo. Seus rebanhos reagiram com algo entre a desilusão
horrorizada e o ultraje vociferante. Nada teria podido deixar tão a nu o
fracasso das igrejas em manter suas congregações a par dos desenvolvimentos no
campo das investigações bíblicas». In Michael Baigent, Richard Leigh, Henry
Lincolin, A Herança Messiânica, 1994, Editora Nova Fronteira, 1994, ISBN
978-852-008-568-5.
Cortesia ENFronteira/JDACT
JDACT, Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, Literatura, Religião, Crónica,