Os Animais Apaixonados
«(…) Estas coisas merecem a sua coroação. Lá adiante há
outro vale, um enorme circo rodeado de montanhas, cultivado, fundo, largo. E
logo depois, quando o solo volta a ser bravo, de pinheiral e mato, aparece o
arco-íris, o arco do céu, aqui tão perto que o viajante cuida que lhe pode
chegar com a mão. Nasce em cima da copa dum pinheiro, vai por aí acima e
esconde-se por trás da encosta, e em verdade não é um arco, mas sim um quase
invisível segmento de círculo franjado de faixas coloridas, assim como uma
cortina de tule finíssimo em frente de um rosto. O viajante cansa-se de
comparações e faz uma última e definitiva, junta todos os arco-íris da sua
vida, verifica que este é o mais perfeito e completo de todos, agradece à chuva
e ao Sol, à sua preciosa sorte que o trouxe aqui nesta preciosa hora, e segue
viagem. Quando passa debaixo do arco-íris, vê que lhe caem sobre os ombros
tintas de várias cores, mas não se importa, felizmente são tintas que não se
apagam e ficam como tatuagens vivas.
O viajante está quase a chegar a Cabeceiras de Basto, mas
antes fez um desvio para Alvite, só para a ver, da banda de fora, a Casa da Torre, conjunto de porta,
capela e torre, barrocas as primeiras, a torre mais antiga, e o mais singular
daqui são os altos pináculos das esquinas, equilíbrio magnífico de formas
volumétricas, airosa graça de funambulismo arquitectónico. Em Cabeceiras, o
viajante é recebido pelas primeiras gotas do que há de vir a ser, não tarda,
uma devastadora bátega. Vai ao convento, que é uma enorme construção
setecentista onde já nada se encontra do primitivo mosteiro beneditino. Esta
região está bem guardada por S. Miguel. Aqui são logo dois, um sobre o pórtico,
e outro, de tamanho maior que o natural, vê-se cá de baixo empoleirado no
lanternim do zimbório, mirando toda a paisagem, à procura de almas perdidas. S.
Miguel deve ter ganho todas as suas batalhas, ou não estariam os demónios, de
língua de fora, pategos e humilhados, suportando os órgãos da igreja, como
atlas de plástica monstruosa, sem nenhuma grandeza.
Volta o viajante à praça, de repente lembrado de que não
vira o Basto, delito que tão pouco se perdoa como não ver o papa em Roma,
estando lá. Habituado a praças de monumento ao meio, o viajante concluiu que o
Basto foi roubado, ou não é ali a sua Roma. Foi por isso informar-se, e afinal
eram só dois passos, a deslado, entre o chafariz e o rio. O Basto, quem é?
Dizem que se trata de um guerreiro galaico, de escudo circular na barriga, como
era moda do tempo. Data, tem a de 1612, e mais
parece um rapazito de bigodes pintados e calções
curtos do que o rústico batalhador de antigas eras. Tem na cabeça uma barretina
das invasões francesas, e para não falhar a primeira comparação parece usar
umas meias bem puxadinhas por mandado de sua mãe ou avó. Dá vontade de sorrir.
O viajante tira-lhe o retrato, e ele apruma-se, olha para a objectiva, quer
ficar favorecido, o Basto, com o seu fundo de ramos verdes, como convém a
senhor de terras e montanhas, muito mais que o S. Miguel do lanternim, tão
distante. O Basto é, por força, uma das mais justificadas estátuas portuguesas,
todos lhe querem bem.
O viajante olha o céu, desconfiado. Estão a amontoar-se
umas nuvens escuríssimas, netas reforçadas das que fizeram o dilúvio. Pensa no
que fará, se fica por ali a beber um cafezinho quente ou se se mete ao caminho,
traz na ideia ir à aldeia de Abadim, que fica perto. Como o viajante anda à
descoberta do que não sabe, tem de correr seus riscos. Vai portanto a Abadim, e
é como se passasse o Rubicão. Não tinha andado um quilómetro desaba uma
catarata do céu. Em poucos segundos o espaço ficou branco do contínuo fluxo de
água. Uma árvore a vinte metros ficava tão vaga, tão difusa como se estivesse
escondida no nevoeiro. Para a estrada, péssima, corriam as cascatas dos montes.
Aí, o viajante temeu. Já se via arrastado pela corrente, de
cambulhada com as pedras soltas e as folhas mortas. Atravessou uma
pontezinha frágil, e agora vai mais sereno, sobe o monte, o automóvel não dá
parte de fraco, e depois de mil voltas aí está Abadim. Não se vê vivalma, toda
a gente recolhida, em casa a que em casa está, em abrigos de ocasião os que
andam fora. A chuva diminuiu, mas ainda cai com grande violência. O viajante
resolve retirar-se, continuar viagem, mais frustrado do que quer confessar. É
então que passa uma mulher nova, de guarda-chuva aberto, e o viajante
aproveita: Boas tardes. Pode dar-me uma informação? Aqui os gados dos vizinhos
ainda vão todos juntos para a serra da Cabreira, ou já não se usa? A mulher
há-de estar a perguntar a si própria por que quer o viajante saber tais coisas,
mas é simpática, e delicada, se lhe perguntam, responde: É, sim senhor. Do
primeiro domingo de Junho até ao dia da Assunção, vai o gado todo para a serra,
com os pastores. Ao viajante custam a entender estas transumâncias, mas a
mulher explica que na serra da Cabreira há uma pastagem que é de Abadim, sua
propriedade mesma, e é para aí que o gado vai aposentar. O viajante lembra-se
de Rio de Onor, terras da banda de lá que são nossas, terras da banda de cá que
são deles, e mais se lhe enraíza a convicção de quanto é relativo o conceito de
propriedade, querendo os homens. Despede-se da mulher, que deseja boa viagem, e
quando já vai na estrada, chove quase nada, encontra um pastorzito de quinze
anos. Quem é, quem não é: Ando a guardar vacas do meu pai e de uns vizinhos». In
José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão
2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,