«(…) Sua exclamação foi espontânea e demonstrava preocupação: O barrete vermelho! Mas, tecido de cor púrpura!?... O inspector ficou intrigado com aquela reacção. Isso lhe diz alguma coisa? Maurício não respondeu e, com a ponta do cajado, levantou o tecido e o examinou. Material antigo. Trouxe para mais perto do rosto. Cheiro de mofo, corte feito com faca. Não foi tesoura. Os dois o olhavam, intrigados. A senhora tem certeza de que esses objetos não estavam aí quando saiu do carro? Sim, tenho. Nunca tinha visto isso antes. Será que o ladrão estava fugindo e deixou essas coisas?
Não
seria muita esperteza da parte dele esconder o resultado de um furto dentro do
carro que acabava de assaltar, penso eu. O inspetor deu o seu palpite. De facto,
não faz sentido. A dúvida é se ele abriu o vidro para roubar a bolsa e
aproveitou para deixar esses objectos ou se, ao contrário, queria desfazer-se
deles e aproveitou para levar a bolsa. Nessa hipótese, deve ter cometido outro
assalto antes de chegar aqui.
O
zelador de Eunate vinha chegando e o inspector pediu um saco plástico para
guardar os dois objectos. Ele se comportava como se não tivesse gostado de
Maurício ter interrogado a mulher e
procurava agora tomar iniciativas. Para Maurício, porém, aquilo não fora um
simples roubo. O inspector tentava acalmar a mulher. Assim que a viatura
chegar, a senhora poderá formalizar a ocorrência e serão tomadas as
providências para encontrar a bolsa com os seus documentos.
Maurício
olhou mais uma vez para o saco plástico e depois se aproximou do carro. Uma ideia,
que de início achou absurda, começou a tomar vulto e ele se voltou para a
comprida alameda que vinha da rodovia até o estacionamento. Esse assassino pode
ter feito isso, sim, pode ter feito.
Enquanto
o inspector tranquilizava a mulher, ele começou a caminhar pela alameda,
examinando os arbustos e as árvores que ladeavam o asfalto. O inspector o
observava, inquieto, com receio de ser desprestigiado. A mulher parara de falar
e pouco depois eles o viram agachar-se perto de uma árvore e pegar um objecto
que de longe parecia uma bolsa.
Lá
do outro lado da alameda, despontou uma viatura policial que chegou até o pátio
de estacionamento. Maurício começou a voltar, tão devagar quanto tinha ido, e
trazia na mão uma bolsa de tamanho médio, de couro, parda, que entregou à
mulher. Mas, essa é minha bolsa! Como o senhor sabia que ela estava escondida
perto das árvores? O ladrão devia estar de motocicleta. A bolsa é meio grande e
seria um estorvo. Imaginei que ele a jogaria em algum lugar próximo daqui. Acredito que não teve tempo
para retirar qualquer coisa.
A
mulher abriu a bolsa e sorriu aliviada. O dinheiro e os documentos estavam
ainda lá. Era uma situação desconcertante para o inspector, que se lembrava do
desempenho de Maurício em Roncesvalles e que agora, como num passe de mágica,
devolvia os pertences da mulher. Entretanto, ficou agradecido por ele não dizer
mais nada na frente dela e dos policiais, que a acompanharam à delegacia,
levando o saco plástico contendo os objectos encontrados no carro.
Logo
que se distanciaram, o detetive não aguentou: Nenhum ladrão jogaria fora essa
bolsa sem pegar o dinheiro. Certas intuições não se traduzem facilmente em
palavras. Era preciso cuidado para explicar a esse policial que a mulher tinha
razão quando lembrou que aquilo parecia feitiçaria. Um ladrão não deixa no lugar
do roubo dois objectos emblemáticos como aquele barrete e o tecido purpúreo.
A lógica
não cria um conhecimento novo, como a botânica ou a química. Ela apenas se
aproveita de dados já existentes. No caso desse estranho roubo, cheguei à
conclusão de que a bolsa não era o objectivo do ladrão, que queria apenas
completar o serviço de Roncesvalles. O policial quase caiu ao se virar
bruscamente para interrogá-lo». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra,
Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.
JDACT, Santiago de Compostela, Cultura, AJ Barros, Literatura,