«(…) Ao descerem o Monte dei Perdon, o detective fez um comentário enigmático. O Caminho é uma homenagem à morte e ao sofrimento. O senhor já fez o Caminho? É o lugar predilecto das minhas férias. Já fiz o trajecto de Roncesvalles a Santiago onze vezes. Onze vezes!, exclamou Maurício, impressionado. Sim. Onze vezes. Mas não foi só a passeio. Minha mulher é professora de arquitectura e defendeu tese de mestrado sobre a influência muçulmana na construção das igrejas do Caminho. A primeira vez que fiz o Caminho tinha dezoito anos. Éramos um grupo de universitários fazendo pesquisas para trabalho escolar. Naquela época o percurso era mal sinalizado e havia menos peregrinos.
Apoiando-se
no cajado para não escorregar no terreno pedregoso da descida, trocavam
opiniões sobre a influência que a simples descoberta de um túmulo teve sobre a
humanidade. Calcula-se que durante o período que vai do século X ao XIV
aproximadamente quinhentos mil pessoas desciam anualmente de todos os cantos da
Europa para visitar as relíquias de São Tiago.
Minha
mulher diz que o Caminho foi um fenómeno histórico e histérico ao mesmo tempo.
Ainda hoje, para quem o faz, o Caminho é uma coisa inexplicável e inesquecível.
Dois conceitos interessantes. Gostei. O albergue! O albergue criou o Caminho,
marcou o seu trajecto e recebia os peregrinos que passaram a ter onde repousar
e se recuperar para enfrentar a jornada seguinte. É bem possível que tenha
razão. Deve-se ao albergue a definição do Caminho.
Uma
das coisas que mais me impressionam é a importância do Caminho para o progresso
da humanidade. Progresso da humanidade?, os pensamentos de Maurício se
afastavam para outro raciocínio e a pergunta não saiu com naturalidade.
Mas
é claro! Enquanto os cristãos viviam obcecados pelo medo do inferno, os árabes
avançaram nos estudos da matemática, da física, da arquitectura, filosofia,
literatura, medicina e astronomia. Quando invadiram a Península Ibérica, em
711, textos de Sócrates, Platão, Aristóteles, Ptolomeu, Hipócrates, Galeno e
grandes médicos árabes, como Avicena e Ali Abbas, escritos em árabe e hebreu,
vieram para a Espanha. Com a reconquista da cidade de Toledo em 1085, esses
textos chamaram a atenção de cristãos e judeus. O bispo da época criou um grupo
de tradutores que ficou conhecido como Escola de Tradutores de Toledo.
Como
um arauto de toda a sabedoria da Idade Média, ele parou e virou-se para
Maurício: Entendeu agora? Ao chegarem à Península Ibérica os peregrinos
entravam em contacto com essas traduções e as levavam de volta para Paris,
Roma, Amsterdão e outros centros europeus. A cultura clássica havia
desaparecido e o Caminho a ressuscitou.
De
facto, a Escola de Tradutores provocou uma revolução cultural no continente. Um
peregrino levava na mochila uma tradução de Sócrates, outro, de Platão, e assim
a Europa recompôs a cultura clássica. Sob esse aspecto, é inegável o mérito da
peregrinação. Não podemos esquecer que o cristianismo deteve o progresso da
humanidade por mais de mil anos e, se não fosse o Caminho, esse atraso seria
maior.
A
queda do Império Romano deixara a Europa sem lei e sem ordem. Não havia mais
uma força organizada para proteger a ordem pública, e o comércio e a vida
urbana enfraqueceram. Consequentemente, escolas e actividades culturais também
diminuíram e o que restou girava em torno do cristianismo. Havia a crença de
que o mundo desapareceria no fim do primeiro milénio e, então, reis e nobres
começaram a construir igrejas, para serem enterrados dentro delas. Acreditavam
que, assim, ficavam mais perto de Deus.
Felizmente,
o mundo não acabou com o fim do milénio, mas o poder religioso se consolidara,
e igrejas e monumentos continuaram
sendo construídos em toda a Europa como prova de devoção, levando catedrais e
mosteiros a concorrer em grandiosidade para atrair peregrinos e doações.
Até
então, as igrejas eram construções menores e os grandes templos foram um
desafio novo que levou os construtores a buscarem inspiração nos edifícios de
Roma, dando origem ao estilo que passou a chamar-se românico.
Não
se aborreça com minhas explicações, pois elas são importantes para se entender
o Caminho. A quantidade de monumentos românicos forma uma rica esteira de arte.
O estilo românico se aperfeiçoou e surgiu o arco de tensão, em que uma pedra se
apoia noutra, possibilitando maior abertura dos vãos e dando origem ao estilo
gótico, que permitiu naves mais altas e janelas maiores com vitrais coloridos,
trazendo a luminosidade para dentro das igrejas.
Maurício
tinha por hábito tentar descobrir o que de mais sério poderia existir dentro de
uma conversa simples. Inquietava-o que um policial graduado, envolvido numa
investigação de crimes misteriosos, perdesse tempo em tantas divagações. Não
simpatizava com aquele homem, não o conhecia e estranhava o diálogo.
Aliás,
os dois estilos mostram maneiras diferentes de se ver Deus. Sim, é verdade! No
românico, o interior das igrejas tem pouca luz, para que a pessoa medite e
sinta a plena força da divindade. Já o gótico é alegre, nele as janelas são
maiores, e a claridade mostra o ser humano como parte da divindade». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra,
Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.
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