Quarenta e quatro anos antes. Lisboa, Outono de 1405
«(…) O rei e a rainha acenavam,
mostrando os sorrisos que aqueciam a alma das gentes. João I não desencantaría
os seus de Lisboa, sempre ciente de que, aos olhos do povo, parecer é também
ser. Cuidava ao pormenor as aparições reais, marcadas de simbolismo, para que
perdurasse na memória de todos a imagem de um soberano bom, que devolvera a
crença a Portugal, e de uma dinastia pujante.
Por isso, sabia que o maior
tesouro que podia exibir ao reino estava atrás de si, naquele cortejo: os
infantes de Avis, Duarte, Pedro e Henrique. Em cavalos ajaezados com os mais finos
arreios, bem ataviados os infantes, com gibões de veludo bordados a fio de
ouro, as figuras juvenis contrastavam entre si, tanto quanto os caracteres, que
se foram moldando quase opostos. O herdeiro, de rosto redondo, meão de altura e
cabelos castanhos e lisos, de olhar algo amolecido, era mais dado às dúvidas,
que lhe enredavam a existência de estudo aturado e de aprendizagem do ofício de
reinar, ao lado do pai, do que às
decisões terminantes, em linha recta. Duarte arrastava empenho de bem-fazer,
cioso de tudo, lendo e escutando o mais que podia. Fizera-se erudito, mas, por
vezes, escasseava-lhe a têmpera.
Em Pedro, alto e de corpo seco,
as cores de inglês haviam-se imposto no sangue misturado, com o arruivado do
cabelo de ondas fechadas e os olhos azuis, levemente descaídos nas
extremidades, próprios de quem vê a minúcia das coisas e pensa muito. Tão erudito
e apaixonado pelo conhecimento como o mais velho, era um natural sedutor, mas
talvez não viesse a seduzir a todos com o avançar da vida, com as verdades que
lhe saíam da boca. Dado a indagar a natureza humana, os deveres e obrigações de
cada um no mundo e os mistérios da vida, avaliava tudo, mas a abundância de pensamento
não lhe entravava a acção.
Henrique, de onze anos, desprezava
a minúcia para favorecer o gesto largo, grandioso. Moreno, de olhar penetrante
e agitado, mostrava uma vivacidade rara
e pouco quieta. Amigo de se mostrar, insinuante e destemido, não gostava de ser
mandado, convicto de si mesmo. Na rígida hierarquia real era o terceiro, mas
não se via disposto a viver na sombra. Sabendo-se convincente, dobrava a
vontade dos outros pela persistência, ou pela paixão que punha nos seus
interesses, desarmando-os.
Os outros três, pela curta idade,
ainda mal se viam em público, não fosse a inocência e a escassez de tino
estragar a perfeição briosa que el-rei exigia das exibições da real família
para o povo ver. Isabel, de oito anos, já se mostrava determinada e segura, e
quebrava a rigidez de ferro do pai, por ser a única infanta. João, aos cinco
anos, adivinhava-se sensato, firme de ideias e menos dado ao sonho do que os
mais velhos. Fernando, de três anos, louro e rosado como um querubim, exibia a
delicadeza dos anjos, ou era essa a leitura dos outros, sempre mais caridosos
com os últimos a nascer numa família numerosa». In Isabel Machado, Infante Dom
Pedro, O Regente Visionário que o Poder quis Calar, 2021, Editorial Presença,
Manuscrito, 2021, ISBN 978-989-897-590-4.
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JDACT, Isabel Machado, História, Regente Pedro, Cultura e Conhecimento, Literatura,