domingo, 3 de setembro de 2023

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «Quando o dia descobriu, pouca iluminação trouxe ao espaço terrestre e ao pensamento do rei. Duarte era madrugador, mas nessa manhã pouco clara teve de apelar aos seus mais determinados princípios…»

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Agora ou Nunca

«(…) Nada, meu senhor, em nada me falaram, só isto que vos digo, retorquiu-lhe Leonor. Como quereis que eu saiba se têm trocas a fazer? Comigo não têm e com nosso filho Fernando muito menos, que ainda é um inocente sem pensamento. Eu por mim só vejo benefícios nesta excelente cedência e só posso dar graças a Deus pelas benesses vindas de tais senhores. Se vossos irmãos as fizeram, cumpri-las-ão de certeza. Com todo o respeito que vossa senhoria me merece, nem sequer me surpreendo tanto como vós por este acaso. Henrique e Fernando não têm filhos nem pensam quebrar o juramento de castidade que fizeram, tornando a acção menos admirável do que vós a quereis fazer.

Aconselhada pela prudência, a rainha fez bem em dirigir-se ao marido em decibéis frágeis, tanto assim que lhe devia essa discrição a dobrar, não só pela subserviência institucional, como pelo exigente voto da paixão. Mas a rainha era de convicções. Sem levantar a voz, manteve contudo a defesa dos cunhados e da sua acção justa, tanto assim que considerava a herança um acto compreensível.

Conversa para enganar maridos? Talvez não. Se Duarte amava a mulher e se ela correspondia com o mesmo sentimento a dobrar, como haveria o soberano de duvidar, numa noite em que tudo corria como devia?

Nem era isso que estava em causa. A Duarte não lhe passava pela cabeça, naquela noite, determinar o grau de sinceridade da esposa, antes procurava entender um acontecimento que, para além de lhe causar surpresa, também o alertava para um conjunto de manobras que pressentia. Mais do que surpreendido, estava um tanto decepcionado por os irmãos não lhe comunicarem directamente e em primeiro lugar as suas intenções.

Atento ao que a rainha lhe dizia, o monarca Duarte olhou fixamente o rosto amado, procurando na quase escuridão do quarto descortinar alguma contradição. Descansado por não encontrar na inspecção nem maldade nem incoerência, aconchegou-se a ela, como se estivesse no ventre materno, sentindo-lhe as formas do corpo moldarem-se às suas, até que o sono determinou o encerramento da visão e nada mais viu pela noite dentro.

Quando o dia descobriu, pouca iluminação trouxe ao espaço terrestre e ao pensamento do rei. Duarte era madrugador, mas nessa manhã pouco clara teve de apelar aos seus mais determinados princípios para se pôr a caminho dos compromissos. Saiu da cama forçado, um tanto maldisposto, convencido de que os reais deveres que tinha pela frente não seriam mais importantes do que os exercícios da noite já passada». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-407-0.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

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