Agora ou Nunca
«(…) Nada, meu senhor, em nada me
falaram, só isto que vos digo, retorquiu-lhe Leonor. Como quereis que eu saiba
se têm trocas a fazer? Comigo não têm e com nosso filho Fernando muito menos,
que ainda é um inocente sem pensamento. Eu por mim só vejo benefícios nesta excelente
cedência e só posso dar graças a Deus pelas benesses vindas de tais senhores.
Se vossos irmãos as fizeram, cumpri-las-ão de certeza. Com todo o respeito que
vossa senhoria me merece, nem sequer me surpreendo tanto como vós por este
acaso. Henrique e Fernando não têm filhos nem pensam quebrar o juramento de
castidade que fizeram, tornando a acção menos admirável do que vós a quereis
fazer.
Aconselhada pela prudência, a rainha
fez bem em dirigir-se ao marido em decibéis frágeis, tanto assim que lhe devia
essa discrição a dobrar, não só pela subserviência institucional, como pelo
exigente voto da paixão. Mas a rainha era de convicções. Sem levantar a voz, manteve
contudo a defesa dos cunhados e da sua acção justa, tanto assim que considerava
a herança um acto compreensível.
Conversa para enganar maridos? Talvez
não. Se Duarte amava a mulher e se ela correspondia com o mesmo sentimento a
dobrar, como haveria o soberano de duvidar, numa noite em que tudo corria como
devia?
Nem era isso que estava em causa.
A Duarte não lhe passava pela cabeça, naquela noite, determinar o grau de
sinceridade da esposa, antes procurava entender um acontecimento que, para além
de lhe causar surpresa, também o alertava para um conjunto de manobras que
pressentia. Mais do que surpreendido, estava um tanto decepcionado por os
irmãos não lhe comunicarem directamente e em primeiro lugar as suas intenções.
Atento ao que a rainha lhe dizia,
o monarca Duarte olhou fixamente o rosto amado, procurando na quase escuridão do
quarto descortinar alguma contradição. Descansado por não encontrar na inspecção
nem maldade nem incoerência, aconchegou-se a ela, como se estivesse no ventre
materno, sentindo-lhe as formas do corpo moldarem-se às suas, até que o sono determinou
o encerramento da visão e nada mais viu pela noite dentro.
Quando o dia descobriu, pouca iluminação
trouxe ao espaço terrestre e ao pensamento do rei. Duarte era madrugador, mas nessa
manhã pouco clara teve de apelar aos seus mais determinados princípios para se pôr
a caminho dos compromissos. Saiu da cama forçado, um tanto maldisposto,
convencido de que os reais deveres que tinha pela frente não seriam mais importantes
do que os exercícios da noite já passada». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do
Infante Santo, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-407-0.
Cortesia de CdoAutor/JDACT
JDACT, Jorge Sousa Correia, Literatura, Cultura, Conhecimento,