VII
«(…) Gosto de cozinhas, esta
soberba, para saciar a fome a sede dos caminhos. Atravesso átrios, arcadas,
belos corredores sob os claustros deste magnifico paço, à espera de ordens de
dona Isabel, pela boca de Soledad. Como não há sinal dela até ao cair da noite,
exploro recantos interiores não vedados, depois pátios refrescados por alvercas
e aroma de laranjeiras, entre canteiros de rosmaninho dispostos com elegância.
Respiro um ar sublime, a alma apaziguada. E no entanto a lembrança de Juan
atravessa essa paz com silvos intermitentes, como se não pudesse gozar o
descanso enquanto o não souber num mergulho invertido nas estrelas, deitado na
austera maciez da choça.
No outro dia acordamos com
trombetas, anúncio de verdadeira festa no paço e entre os muros da cidade. À
noite bufões, trovadores, mesteirais, segréis repetem lá fora a viva animação
vivida entre as grossas paredes de Aljaferia, durante uma semana inteira, com
bodo ao povo e esmolas aos pobres.
Aqui passamos dois meses na paz dos
anjos, apesar de se espalhar a confusão por Castela, à conta da guerra de
sucessão. De um lado Sancho, usurpador da coroa ao filho do irmão mais velho,
já morto. Do outro lado o pai, Afonso X, que designara o neto, para sucessor.
Afonso é avô materno do rei de Portugal, casado em segundas núpcias com uma
irmã do pai de dona Isabel. Não é recomendável, ainda, a viagem para ocidente.
Atravessar terras de ânimos acesos, podia fazer perigar o séquito.
Entretanto as tropas de Pedro
III, na Sicília, chefiadas por Conrado Lanza, alcançam grandes vitórias contra
as de Carlos de Anjou. O rei de Aragão vibra de tal modo que acaba por
considerar uma aproximação ao campo das operações. E numa das noites mais
tristes desta estadia agradável, anuncia a partida e despede-se da filha. Toma
o rumo de El Joll, na África, a pretexto de ir ajudar o rei Abu Beer. A verdade
é que aguarda mais de perto um chamamento certo da sua gente, na Sicília.
Falava eu de paz dos anjos. Isso até
chegar aquela triste notícia da morte de Juan de Cardeña por apedrejamento, a
três léguas de Santes Creus, na antevéspera da partida para Portugal. Até a
organização do tempo de dona Isabel sofre grave alteração. Deixa o cuidado das
rosas pela manhã, as lições de língua portuguesa pelas tardes, e não descansa
enquanto não vê satisfeitos seus rogos aos irmãos mais velhos, para que
obtenham do clero local, ainda reticente, a ordem para ser dado enterramento
cristão ao irmão de sua aia.
Nessa altura revejo meu tio
Ángel. Com os monges de Monzón, os bispos de Zaragoza e Huesca, com Soledad e
uns poucos servidores dos paços reais, lá vou ajudar a cavar a sepultura sob o
carvalho mais frondoso, como pedia Juan, entre a casa de pedra e a choça de
Vilafranca del Pènedès. Nem flores nem lamentos. Tapamos a campa com pedras maneiras,
colocamos à cabeceira uma cruz de madeira tosca, desfazemos os torrões maiores para
alisar a última cama. O único luxo é a pequena lápide inclinada a meio do
comprimento, oferta de dona Isabel, com os dizeres de O Livro da Sabedoria por
ela mesma escolhidos: Os sentidos são de Deus. E nada mais, só meus soluços de
varão que ainda não aprendeu a domesticar sentimentos». In Maria Helena Ventura, Onde
Vais Isabel?, 2008, Edições Saída de Emergência, 2008, ISBN 978-989-637-034-3.
Cortesia de ESEmergência/JDACT
JDACT, Maria Helena Ventura, Literatura, Rainha Santa Isabel, História,