Agora ou Nunca
«(…) Como sempre/ ouviu missa na
capela contígua aos seus aposentos, ainda as oito horas da manhã não eram
suficientes para prescindir das velas que iluminavam o recanto do senhor. A seu
lado, Diogo Lopes Sousa punha-o em dia com o despacho, coisas miúdas e algumas intrigas
pequenas. Acabada a celebração religiosa, enquanto se dirigia para a Casa de
Justiça da Corte ao encontro do Juiz dos Feitos de el-rei, apoderou-se
dele uma vontade muito grande de esclarecer a conversa da noite anterior, indagando
Diogo Lopes Sousa sobre o assunto:
Dizei-me, meu fiel amigo, se é rumor
ou ouviste falar do testamento que meus irmãos Fernando e Henrique fizeram a favor
de meu filho Fernando.
Testamento? Que testamento, senhor7,
mostrou-se o escudeiro espantado, sem que o rei tivesse a certeza de que o fazia
de boa-fé ou de fingida ignorância.
Senhor, sabeis como vos sou leal e
afeiçoado. Sabeis também que não poupo as palavras quando se trata de vos servir,
assim como nunca vos negarei o meu conselho e auxílio no dia em que dele
precisares e mesmo sem dele careceres. De tal testamento nunca ouvi falar, concluiu
o escudeiro.
Já não era só uma grande preocupação
que o rei levava para esclarecer com o irmão Henrique, mas duas. Viera a Lisboa
para esclarecer e pedir conselho ao irmão sobre a conversa que tivera com o infante
Fernando, agora surge-lhe de surpresa a notícia de que os irmãos queriam fazer do
filho testamenteiro. As interrogações eram muitas e as respostas nenhumas, por isso,
nesse dia, o monarca já não conseguiu concentrar-se no que quer que fosse. Nada
mais lhe prendeu o pensamento, e assim pouca atenção deu às coisas e às pessoas.
Se o tempo que fazia lá fora não ajudava
Duarte, o tempo que passava preguiçoso na sua imensa lentidão também não, esperando
o angustiado rei a hora de se encontrar com o infante Henrique.
Quando o entardecer tomou o passo
à claridade, o infante Henrique acabaria por chegar com a sua comitiva, instalando-se
uma enorme confusão. Era normal. Homens habituados ao exercício das armas e à matança
nas caçadas, não tinham a mesma disposição dos que gastavam a cabeça a pensar
em leis ou na forma como haviam de gerir o reino.
Mal Henrique pôs os pés no chão, já
o rei se insinuava na sua frente, esperando do irmão a vénia formal, para depois
se apertarem num abraço fraterno, mesmo que a um interessasse a folia e o exercício
das armas e ao outro a paz dos dias com pão». In Jorge Sousa Correia, O
Mistério do Infante Santo, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-407-0.
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