segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Onde Vais Isabel? Maria Helena Ventura. «E desata a rir medonho, contagiando os vagabundos qne o acompanham. Um deles, com uma faca mal afiada na mão dextra, segura-me pelos cabelos com a esquerda, obrigando-me a levantar do banco…»

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VII

«Essa noite não consigo dormir. Encostado às portadas da janela imagino-me um ramo de arbusto viçoso, derrubado por um vento quente. O vento é a dor da ausência de Juan, irreverente olhar sobre coisas e gentes, a farejar à noite os sons da natureza. Quando eu me anunciava cozia o pão de castanhas, a bolacha estaladiça de trigo negro e azeite, preparava o coalho de leite fervido excedentário dos queijos. E apresentava-me frescos os manjares, como pai ansioso à espera do filho pródigo. Nunca, nunca mais verei meu tio saborear com o sorriso a minha sofreguidão.

Um dia peço permissão para ir até Barcelona, com saudades das charnecas, da casa da viúva em Santa Margarida els Monjos. Penso até avançar mais, talvez à beira do mar aspirar aquele ar salino que tanto me apaixona. Chego à casa pela calada da noite, onde a viúva, pouco mais velha do que eu, me espera ansiosa desde que mandei o aviso. Maga extasiada, oferece-me a minha primeira experiência adulta, como se tivesse guardado os segredos agridoces do amor para uma ocasião especial, a ocasião do retorno. Mal sabe que, daí a poucos dias, partirei para sempre.

Embriagar por embriagar, atrevo-me quase madrugada a fazer o que me anda na mona há dois anos, vencer o resto da distância até ao cais, que acolhe gentes de todas as latitudes. O porto está calmo. Só as águas repetem o monótono lamento contra o costado dos barcos. Depois de vaguear entre destroços de caixas, entro numa taberna da cidade, de seis por oito côvados de área, quase vazia a esta hora. Três ou quatro maltrapilhos, ninguém, a roncar no canto mais abrigado, uma mulher de rosto macerado a dormitar num banco, encostada a uma trave levantada contra o tecto. Meio adormecido também, já depois de beber mais uma tagra,-penso nas reviravoltas da vida quando oiço ao longe aquela voz pastosa de surrapa, num linguajar meio desconhecido. Não é ele o sobrinho do frade e do outro?

E desata a rir medonho, contagiando os vagabundos qne o acompanham. Um deles, com uma faca mal afiada na mão dextra, segura-me pelos cabelos com a esquerda, obrigando-me a levantar do banco com o pescoço encolhido de dor.

Que tal ficariam estas fuças se lhe fizéssemos o mesmo?

Sinto a barriga a resmungar, nem sei se borro as pantalonas. E quase a vomitar restos de vinho e jantar, atrevo-me a fazer pela sorte, a pensar que às tantas é o meu fim.

Eu não vos fiz mal nenhum, deixem-me em paz. Estou ao serviço da rainha dona Isabel. E depois? O nosso senhor há-de tomar estas terras, e todos vocês hão-de rastejar. Deixem-me, pela Virgem do Pilar. Eu nada fiz- Mas fez o teu tio monge, que gosta de adorar cabeças feias como as de um bode. Se calhar nem ele sabe que foi por isso que morreu o da viola, feito em pasta de salmoura.

Nessa altura, um tacho salvador na cabeça do imundo, a distracção dos outros, valem-me a fuga. Ouço gritaria de mulher, decerto a pobre que me salvou a levar tunda, enquanto arranco a tremer das pernas até ao cavalo. Atabalhoado, sem encontrar as pontas da arreata, enfio por caminhos de cabras, a cavalgar até o coração saltar do peito. Já perto de Penedès meto-me numa loja entre dornas e arcas de sal, depois cavalgo de novo até uma elevação onde fico acaçapado, entre as moitas.

Nem sei se sonhei. Quando a madrugada começa a clarear, ainda me cerca a teia protectora de filamentos de estrelas, a derreterem como ouro à medida que o sol anuncia a chegada ao trono». In Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel?, 2008, Edições Saída de Emergência, 2008, ISBN  978-989-637-034-3.

Cortesia de ESEmergência/JDACT

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