VII
«Essa noite não consigo dormir.
Encostado às portadas da janela imagino-me um ramo de arbusto viçoso, derrubado
por um vento quente. O vento é a dor da ausência de Juan, irreverente olhar
sobre coisas e gentes, a farejar à noite os sons da natureza. Quando eu me
anunciava cozia o pão de castanhas, a bolacha estaladiça de trigo negro e azeite,
preparava o coalho de leite fervido excedentário dos queijos. E apresentava-me
frescos os manjares, como pai ansioso à espera do filho pródigo. Nunca, nunca
mais verei meu tio saborear com o sorriso a minha sofreguidão.
Um dia peço permissão para ir até
Barcelona, com saudades das charnecas, da casa da viúva em Santa Margarida els
Monjos. Penso até avançar mais, talvez à beira do mar aspirar aquele ar salino
que tanto me apaixona. Chego à casa pela calada da noite, onde a viúva, pouco
mais velha do que eu, me espera ansiosa desde que mandei o aviso. Maga
extasiada, oferece-me a minha primeira experiência adulta, como se tivesse
guardado os segredos agridoces do amor para uma ocasião especial, a ocasião do
retorno. Mal sabe que, daí a poucos dias, partirei para sempre.
Embriagar por embriagar,
atrevo-me quase madrugada a fazer o que me anda na mona há dois anos, vencer o
resto da distância até ao cais, que acolhe gentes de todas as latitudes. O
porto está calmo. Só as águas repetem o monótono lamento contra o costado dos
barcos. Depois de vaguear entre destroços de caixas, entro numa taberna da
cidade, de seis por oito côvados de área, quase vazia a esta hora. Três ou
quatro maltrapilhos, ninguém, a roncar no canto mais abrigado, uma mulher de
rosto macerado a dormitar num banco, encostada a uma trave levantada contra o
tecto. Meio adormecido também, já depois de beber mais uma tagra,-penso nas reviravoltas
da vida quando oiço ao longe aquela voz pastosa de surrapa, num linguajar meio
desconhecido. Não é ele o sobrinho do frade e do outro?
E desata a rir medonho,
contagiando os vagabundos qne o acompanham. Um deles, com uma faca mal afiada
na mão dextra, segura-me pelos cabelos com a esquerda, obrigando-me a levantar
do banco com o pescoço encolhido de dor.
Que tal ficariam
estas fuças se lhe fizéssemos o mesmo?
Sinto a barriga a resmungar, nem
sei se borro as pantalonas. E quase a vomitar restos de vinho e jantar,
atrevo-me a fazer pela sorte, a pensar que às tantas é o meu fim.
Eu não vos fiz mal nenhum,
deixem-me em paz. Estou ao serviço da rainha dona Isabel. E depois? O nosso
senhor há-de tomar estas terras, e todos vocês hão-de rastejar. Deixem-me, pela
Virgem do Pilar. Eu nada fiz- Mas fez o teu tio monge, que gosta de adorar
cabeças feias como as de um bode. Se calhar nem ele sabe que foi por isso que
morreu o da viola, feito em pasta de salmoura.
Nessa altura, um tacho salvador na
cabeça do imundo, a distracção dos outros, valem-me a fuga. Ouço gritaria de
mulher, decerto a pobre que me salvou a levar tunda, enquanto arranco a tremer
das pernas até ao cavalo. Atabalhoado, sem encontrar as pontas da arreata,
enfio por caminhos de cabras, a cavalgar até o coração saltar do peito. Já
perto de Penedès meto-me numa loja entre dornas e arcas de sal, depois cavalgo
de novo até uma elevação onde fico acaçapado, entre as moitas.
Nem sei se sonhei. Quando a
madrugada começa a clarear, ainda me cerca a teia protectora de filamentos de
estrelas, a derreterem como ouro à medida que o sol anuncia a chegada ao
trono». In Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel?, 2008, Edições Saída de
Emergência, 2008, ISBN
978-989-637-034-3.
Cortesia de ESEmergência/JDACT
JDACT, Maria Helena Ventura, Literatura, Rainha Santa Isabel, História,