domingo, 22 de outubro de 2023

Em Busca de Espinosa. António Damásio. «Como era o caso com a consciência, os sentimentos existiam fora das portas da ciência, aí mantidos cuidadosamente não só por uma certa filosofia empenhada em negar qualquer explicação…»

jdact

Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos

Dar a Palavra aos Sentimentos

«Os sentimentos de dor ou prazer são os alicerces da mente. É fácil não dar conta dessa simples realidade porque as imagens dos objectos e dos acontecimentos que nos rodeiam, bem como as imagens das palavras e frases que os descrevem, ocupam toda a nossa modesta atenção, ou quase toda. Mas é assim. Os sentimentos de prazer ou de dor ou de toda e qualquer qualidade entre dor e prazer, os sentimentos de toda e qualquer emoção, ou dos diversos estados que se relacionam com uma emoção qualquer, são a mais universal das melodias, uma canção que só descansa quando chega o sono, e que se torna um verdadeiro hino quando a alegria nos ocupa, ou se desfaz em lúgubre réquiem quando a tristeza nos invade. Dada a ubiquidade dos sentimentos, seria fácil pensar que a sua ciência estaria já há muito elucidada. Mas não está. Dentre todos os fenômenos mentais que podemos descrever, os sentimentos e os seus ingredientes essenciais a dor e o prazer são de longe os menos compreendidos no que diz respeito à sua biologia e em particular à neurobiologia. Isso é especialmente surpreendente quando pensamos que as sociedades avançadas cultivam os sentimentos da forma mais despudorada e manipulam os sentimentos com álcool ou drogas ilícitas, medicamentos, boa e má alimentação, sexo real e virtual, toda espécie de consumos e práticas sociais e religiosas cuja única finalidade é o bem-estar. Tratamos dos nossos sentimentos com comprimidos, bebidas, exercícios físicos e espirituais, mas nem o público nem a ciência fazem uma ideia clara do que são os sentimentos do ponto de vista biológico.

Não posso me declarar inteiramente surpreso com esse estado de coisas dadas as estranhas ideias com que cresci no que diz respeito aos sentimentos. Por exemplo, costumava pensar que os sentimentos não podiam se definir de forma específica, ao contrário dos objectos que se veem, que se ouvem ou em que se pode tocar. Ao contrário dessas entidades concretas, os sentimentos eram intangíveis. Quando comecei a pensar na forma como o cérebro criava a mente, aceitei sem protesto a ideia de que os sentimentos não cabiam em nenhum programa científico. Podíamos estudar a forma como o cérebro nos movimenta. Podíamos estudar processos sensitivos, tais como a visão, e compreender como se organiza o pensamento. Podíamos até estudar as reações emocionais com as quais respondemos a diversos objetos e situações. Mas os sentimentos que, como veremos no próximo capítulo, podem ser distinguidos das emoções continuavam fora do nosso alcance, para sempre misteriosos e inacessíveis. Não era possível explicar como aconteciam os sentimentos e, menos ainda, o local onde aconteciam.

Como era o caso com a consciência, os sentimentos existiam fora das portas da ciência, aí mantidos cuidadosamente não só por uma certa filosofia empenhada em negar qualquer explicação neurocientífica para os fenómenos mentais, mas também por neurocientistas diplomados que lhes negavam a entrada. A prova de que tomei a sério essas diversas limitações é o facto de que durante muitos anos evitei qualquer projecto que dissesse respeito aos sentimentos. Levei muito tempo para descobrir que os obstáculos postos à ciência dos sentimentos não tinham cabimento e que a neurologia dos sentimentos não era menos viável do que a da visão ou a da memória. Mas a realidade de certos doentes neurológicos forçou-me, ao fim e ao cabo, a rever a minha posição». In António Damásio, Em Busca de Espinosa, Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos, Companhia das Letras, 2004, ISBN 978-853-590-490-1.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

JDACT, António Damásio, Ciência, Espinosa, Filosofia, Conhecimento,