Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos
Dar
a Palavra aos Sentimentos
«Imaginem,
por exemplo, encontrar alguém a quem uma certa lesão cerebral tornou incapaz de
sentir vergonha ou compaixão, mas em nada alterou a capacidade de sentir
tristeza, felicidade ou medo. Imaginem uma pessoa a quem uma lesão de outra
região cerebral tornou incapaz de sentir medo, mas não interferia com a
capacidade de sentir compaixão ou vergonha. A crueldade da doença neurológica é
um poço sem fundo para as suas vítimas os doentes, bem como os médicos que os
observam e tratam. Mas a doença neurológica também tem qualquer coisa de
redenção: a doença funciona como um bisturi que separa o cérebro normal do
cérebro doente com espantosa precisão e que assim permite uma rara porta de
entrada na fortaleza do cérebro e mente.
A
reflexão sobre a situação desses doentes e de outros com problemas comparáveis
levou-me à construção de diversas hipóteses. Primeiro, era óbvio que certas
espécies de sentimentos podiam ser bloqueadas pela lesão de um sector cerebral
discreto; a perda de um sector cerebral específico implicava a perda de uma
classe específica de fenômeno mental. Segundo, era também óbvio que sistemas
cerebrais diferentes controlavam diferentes espécies de sentimentos; a lesão de
uma certa região anatómica cerebral não causava a perda de todas as formas
possíveis de sentimento. Terceiro, quando os doentes perdiam a capacidade de
exprimir uma certa emoção também perdiam a capacidade de ter o correspondente
sentimento. De forma surpreendente, contudo, alguns doentes incapazes de ter
certos sentimentos eram ainda capazes de exprimir as emoções que lhes
correspondem ou seja, era possível exibir uma expressão de medo mas não sentir
medo.
A
emoção e o sentimento eram irmãos gémeos, mas tudo indicava que a emoção tinha
nascido primeiro, seguida pelo sentimento, e que o sentimento se seguia sempre à
emoção como uma sombra. Apesar da intimidade e aparente simultaneidade, tudo
indicava que a emoção precedia o sentimento. Entrever essa relação específica
permitiu, como iremos ver, uma perspectiva privilegiada na investigação dos sentimentos.
Essas hipóteses podiam ser testadas com a ajuda de técnicas de neuroimagem que
permitem a criação de imagens da anatomia e actividade do cérebro humano.
Passo
a passo, primeiro em doentes e depois tanto em doentes como em pessoas sem doença
neurológica, começamos a mapear a geografia do cérebro que sente. A meta era
elucidar a teia de mecanismos que permitem aos nossos pensamentos desencadear
estados emocionais e construir
sentimentos». In António Damásio, Em Busca de Espinosa, Prazer e dor na Ciência dos
Conhecimentos, Companhia das Letras, 2004, ISBN 978-853-590-490-1.
Cortesia de CdasLetras/JDACT
JDACT, António Damásio, Ciência, Espinosa, Filosofia, Conhecimento,