Prologo
«Como
assim, professor?, adiantou uma estudante sentada à esquerda, uma gordinha
baixa e de óculos, habitualmente das mais atentas e participativas. Tinha um ar
prendado, devia ser católica. Então não foi a pedra de Roseta que forneceu a
chave do significado dos hieróglifos? Tomás sorriu. A desvalorização da importância
da pedra de Roseta, implícita no seu tom, produzira o efeito que desejava.
Acordara a sala.
Sim, deu uma ajudinha. Mas houve
muito mais do que isso. Uma nova aluna entrou na sala e o professor observou-a
de relance, distraidamente. Como vocês sabem, durante séculos... Hesitou,
retendo a atenção na recém-chegada. Uh... durante séculos... os hieróglifos...
Era uma rapariga que nunca tinha visto. Os hieróglifos permaneceram... uh... eles
permaneceram um grande mistério. A rapariga desconhecida foi sentar-se na última
fila, isolada de todos e, por esta altura, observada por todos. Os... uh...
hieróglifos mais antigos... Tinha um cabelo loiro aos canudos, brilhante e
vivo, e um corpo voluptuoso. Pois... os primeiros hieróglifos remontam a...
uh... três mil anos antes de Cristo. Tomás fez um esforço para se concentrar na
matéria e obrigou-se a desviar o olhar da rapariga, percebeu que não lhe ficava
bem permanecer embasbacado a observá-la e continuar a gaguejar.
Os... uh... hieróglifos
permaneceram quase inalterados durante mais de três mil anos, até que, no final
do século IV d. C, deixaram de ser usados. O seu uso e a sua leitura
perderam-se subitamente, no espaço de apenas uma geração. E sabem porquê? A
classe permaneceu em silêncio. Ninguém sabia. Os egípcios ficaram amnésicos?,
gracejou um aluno, um dos raros rapazes que integravam a turma. Risinhos na
sala, as raparigas achavam-lhe graça. Por causa da Igreja cristã,
explicou o professor com um sorriso forçado. Os cristãos proibiram os egípcios
de usarem os hieróglifos. Queriam cortar com o seu passado pagão, queriam obrigá-los
a esquecerem Ísis, Osíris, Anúbis, Horus e toda aquela imensa corte de deuses.
O corte foi de tal modo radical que o conhecimento da antiga escrita pura e
simplesmente desapareceu. O professor fez um gesto rápido. Puf!, soprou.
De um momento para o outro, nem uma única pessoa se tornou capaz de perceber o
que os hieróglifos queriam dizer. A velha escrita egípcia passou à história enquanto
o diabo esfrega um olho.
Tomás atreveu-se, agora que já
tinha decorrido pelo menos um minuto, a mirar de fugida a recém-chegada. O
interesse pelos hieróglifos manteve-se hibernado e só se reacendeu no final do
século XVI, quando, por influência de um livro misterioso, intitulado Hypnerotomachia
Poliphili, de Francesco Colonna, o papa Sisto V mandou colocar obeliscos egípcios
nas esquinas das novas avenidas de Roma. Tomás achou-a uma deusa, embora de um
género decerto diferente de Ísis. Os eruditos começaram a tentar decifrar
aquela escrita, mas não percebiam nada, achavam estarem diante de semagramas,
caracteres que representavam ideias completas.
Ela era mais do género das divindades
nórdicas. Quando Napoleão invadiu o Egipto, mandou vir atrás de si uma equipa
de historiadores e cientistas com a missão de cartografarem, registarem e medirem
tudo o que encontrassem. Uma espécie de cortesã para animar os festins de Tor e
Ódin. Essa equipa chegou ao Egipto em 1798 e, no ano seguinte, foi chamada
pelos soldados estacionados no Fort Julien, no delta do Nilo, para ver uma
coisa que eles encontraram na cidade de Roseta, ali nas proximidades. A loira
tinha olhos de um azul--turquesa cristalino, a pele de um branco lácteo e
irradiava uma beleza espampanante, daquelas particularmente apreciadas pelos
homens e desprezadas pelas mulheres.
Os soldados tinham recebido a
missão de demolirem uma parede, de modo a abrirem caminho para o forte que
ocupavam, quando descobriram, inserida na parede, uma pedra com três tipos de
inscrição. Tomás concluiu tratar-se de uma estrangeira, era raro em Portugal
aquele tipo de loiras tão clarinhas. Os cientistas franceses olharam para a
pedra, identificaram caracteres gregos, demóticos e hieróglifos, concluíram que
se tratava do mesmo texto nas três línguas e aperceberam-se imediatamente da
importância da descoberta. Seria alemã? O problema é que as tropas britânicas
avançaram sobre o Egipto e derrotaram as francesas, e a pedra, que era suposto
ser enviada para Paris, acabou por ser remetida para o Museu Britânico, em Londres.
Podia ser italiana ou francesa, mas Tomás apostava num país nórdico. A tradução
do grego revelou que a pedra continha um decreto da assembleia dos sacerdotes
egípcios, registando os benefícios que o faraó Ptolemeu concedera ao povo do
Egipto e as honras que, em troca, os sacerdotes endereçaram ao faraó». In José
Rodrigues dos Santos, Codex 632, Gradiva, 2005, ISBN 978-989-616-072-2.
Cortesia de Gradiva/JDACT
JDACT, José Rodrigues dos Santos, Literatura, Egipto, Conhecimento,