quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Vaticanum. José Rodrigues dos Santos «É o achado em torno do qual tenho andado às voltas desde que cheguei aqui a Roma. Julguei que estavas a trabalhar no túmulo de São Pedro...»

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«Um odor encharcado de mofo enchia o ar pesado, quente e húmido das catacumbas. Depois de ajeitar o capacete de operário que lhe protegia a cabeça, Tomás Noronha fez sinal à acompanhante para o seguir e virou a lanterna para a frente. O foco de luz, que até ali dançava nervosamente pelas paredes desgastadas pelo tempo, perdeu-se de repente num espaço mais vasto que sem aviso se abriu diante deles. O historiador estacou e examinou a nova divisória; dir-se-ia que haviam chegado a uma sala ou até a um pátio interior repleto de entulho. Brrr, que sítio sinistro!, gemeu Maria Flor atrás dele, quebrando o silêncio. Onde estamos?

Por baixo das Grotte Vecchie, identificou Tomás. As Grutas Velhas. Mais exactamente no muro sul. À medida que avançamos vamos recuando no tempo. Aqui é o Século III, ali ao fundo o Século II, depois o Século I. As vozes de ambos reverberavam no espaço fechado, amplificadas pela rede de clivi, ou pequenas ruas, e de túneis que furavam entre as paredes e janelas dos mausoléus que os cercavam. Nos tectos das catacumbas acumulavam-se gotas invisíveis que iam pingando a um ritmo cadenciado, soltando aqui e acolá pliques e ploques molhados que também ecoavam pelas ruínas; parecia que espectros assombravam as múltiplas criptas esquecidas sob o pó dos Séculos. Ainda falta muito?

Depois de atravessarem mais um clivus, o foco de luz da lanterna detectou uma estrutura inserida nos escombros diante da grande parede com reboco vermelho que se estendia do outro lado do espaço. Chegamos, disse ele. Entramos no Século I. Maria Flor varreu as ruínas com o olhar. O que é isto? O Campo P.

A luz percorreu uma coluna de oitenta centímetros de altura de mármore e depois uma parede perpendicular e terminou na peça de mármore que a coluna sustentava com dois nichos sobrepostos; assemelhava-se a um alpendre de pedra, mas, tratando-se de uma necrópole, só podia ser um mausoléu em forma de edícula. Uma das colunas evidentemente desaparecera, mas a outra sobrevivera.

Maria Flor apontou para a estrutura. É isto o Campo P? Não, indicou Tomás, ainda a analisar o mausoléu embutido na pedra. O Campo P é todo este espaço apertado onde agora penetramos e que está fechado ao público. A estrutura à nossa frente é aparentemente o troféu de Gaius. Quem? Gaius. O que é isso? O historiador avançou, atravessando o Campo P até chegar junto da estrutura; todo o espaço era rectangular, com uns sete metros de um lado ao outro, e estava coberto de pedras e túmulos rasos, evidentemente de pessoas mais modestas do que aquelas cujos restos repousavam nos mausoléus para a eternidade.

É o achado em torno do qual tenho andado às voltas desde que cheguei aqui a Roma. Julguei que estavas a trabalhar no túmulo de São Pedro... Tirando o saco dos utensílios arqueológicos que trazia às costas, Tomás depositou-o com cuidado diante da coluna, aos pés da pequena parede aí erguida. O troféu de Gaius é o túmulo de Pedro, querida. O Campo P é a designação arqueológica de Campo de Pedro.

Pouco convencida, ela analisou a coluna e esboçou uma expressão carregada de desconfiança. Isto é um túmulo? Sim, foi nesta zona que Pedro foi crucificado e os seus restos mortais sepultados. Estamos no túmulo de Shimon, o primeiro dos apóstolos, o pescador a quem Jesus disse que seria a pedra sobre a qual ergueria a sua Igreja. A palavra pedra está na origem do nome pelo qual Shimon, ou Simão, ficou eternamente conhecido. Pedro. Simão, a pedra, ou Pedro, o primeiro papa.

Como sabes isso? Como sei o quê?, devolveu ele em tom zombeteiro. Que Pedro era o pescador Simão que acompanhava Jesus e que mais tarde se tornou o primeiro papa? Não, palerma! Que é este o sítio onde São Pedro foi crucificado e sepultado. Como sabes isso?

Todas as fontes antigas, como Tertuliano em 195 e Eusébio em 325, atestam que Pedro era o bispo de Roma e foi crucificado durante as perseguições lançadas pelo imperador Nero contra os cristãos no ano 64. Um texto apócrifo intitulado Actos de Pedro esclarece que a crucificação foi feita de cabeça para baixo e pernas para o ar, versão que parece ser confirmada indirectamente no Evangelho de João e numa outra fonte citada por Eusébio. Maria Flor apontou com insistência para a estrutura enquadrada pela coluna». In José Rodrigues dos Santos, Vaticanum, 2016, Gradiva, ISBN 978-989-616-733-2.

Cortesia de Gradiva/JDACT

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