«Recentemente, a vira lendo um grosso livro sobre costumes e religiões de outros continentes. As três respeitavam muito meu trabalho no Vaticano ainda que, na realidade, pouco conheciam sobre a minha ocupação; só sabiam que não deviam perguntar sobre isso. Suponho que foram advertidas e que nossas superioras fizeram especial insistência neste assunto, já que, em meu contrato de trabalho com o Vaticano, uma cláusula muito explícita, deixava claro que, sob pena de excomunhão, eu era proibida de falar sobre meu trabalho com pessoas alheias ao mesmo. Não obstante, como sabia que elas gostavam, de vez em quando contava algo recentemente descoberto sobre as primeiras comunidades cristãs ou dos começos da Igreja. Obviamente, só falava do bom, do que se podia confessar sem solapar a historiografia oficial nem os pontais da fé.
Para
que explicar, por exemplo, que num escrito de Irenes, um dos Papas da Igreja,
do ano de 183, zelosamente guardado pelo Arquivo, se mencionava como
primeiro Papa a Lineu e não a Pedro, e que este nem sequer era mencionado?
Ou que a lista oficial dos primeiros Papas, recolhida no Catalogus
Liberianus do ano de 354, era completamente falsa e que os supostos
Pontífices que nela apareciam mencionados, Anacleto, Clemente I, Evaristo,
Alexandre... Nem sequer existiram? Para que contar algo de tudo isto...? Para
que dizer, por exemplo, que os quatro Evangelhos foram escritos
posteriormente às Epístolas de Paulo, verdadeiro forjador de nossa Igreja,
seguindo sua doutrina e ensinamentos, e não ao inverso como acreditava todo o
mundo?
Minhas
dúvidas e meus temores, que Ferma, Margherita e Valéria captavam com grande
intuição, minhas lutas internas e meus grandes sofrimentos, era um segredo que
só podia participar ao meu confessor, o mesmo confessor de todos os que
trabalhavam nos terceiro e quarto andares subterrâneos do Arquivo Secreto, o
padre franciscano Gilberto Pintonisso.
Minhas
três irmãs e eu, depois de deixar o jantar no forno e a mesa posta, entramos na
capela de casa e nos sentamos sobre as almofadas espalhadas pelo solo, ao redor
do Sacrário, em frente ao qual ardia permanentemente a luz de uma minúscula
vela. Rezamos juntos os mistérios dolorosos do Rosário e, em seguida, ficamos
em silêncio, recolhidas em oração. Entrávamos na Quaresma e, nesses dias, por
recomendação do padre Pintonisso, eu andava reflectindo sobre a passagem
evangélica dos quarenta dias de jejum de Jesus no deserto e as tentações do
demónio. Não era, precisamente, prato do meu gosto, mas sempre fui
tremendamente disciplinada e não me ocorreria contrariar uma indicação de meu
confessor.
Enquanto
orava, a conversa mantida naquele meio-dia com os prelados voltava uma e outra
vez à minha cabeça, me atrapalhando. Perguntava-me se poderia realizar com
êxito um trabalho em que me ocultavam informação e, além disso, o assunto tinha
um cariz muito estranho. monsenhor Tournier dissera que O homem que aparece
nas fotografias, estava implicado em um grave delito contra a Igreja Católica e
as demais Igrejas Cristãs. Lamento muito, mas não podemos lhe dar mais detalhes.
Nessa
noite tive horríveis pesadelos nos quais um homem sem cabeça, que era a
reencarnação do demónio, me aparecia em todas as esquinas de uma longa rua pela
qual eu avançava aos trambolhões, como borracha, me tentando com o poder e a
glória de todos os reinos do mundo. Às oito em ponto da manhã, a campainha da
porta da rua começou a soar com insistência. Margherita, foi quem respondeu,
entrando pouco depois na cozinha com cara de situações estranhas: Otávia, um
tal de Kaspar Glauser espera você lá em baixo. Fiquei petrificada. O capitão
Glauser-Róist?
Murmurei,
com a boca cheia de biscoito. Se é capitão, não me disse, pontuou Margherita, Mas
o nome coincide. Engoli o biscoito, sem mastigar, e bebi de um gole o café com
leite. Coisas do trabalho... Desculpei-me, abandonando precipitadamente a
cozinha debaixo do olhar surpreso de minhas irmãs. O apartamento da Piazza delle
Vaschette era tão pequeno, que num suspiro tive tempo de organizar meu quarto e
passar pela capela para me despedir do Santíssimo.
Em
seguida, apanhei de cima do armário da entrada o casaco e a bolsa, e saí,
fechando a porta atrás de mim, perdida na confusão. O que fazia o capitão
Glauser-Róist me esperando em baixo? Acontecera algo? Escondido detrás de uns
impenetráveis óculos negros, o robusto soldadinho de brinquedo se apoiava
inexpressivo, contra a porta de um ostentoso Alfa-Romeo azul escuro. É costume
romano estacionar o carro na mesma porta do lugar aonde se vai, atrapalhando o
trânsito ou não. Qualquer bom romano explicará pacientemente que, deste modo,
se perde menos tempo.
O
capitão Glauser-Róist, apesar de sua nacionalidade suíça, obrigatória para
todos os membros do pequeno exército vaticano, devia estar a muitos anos
morando na cidade, porque adoptara seus piores costumes com absoluta placidez.
Alheio à especulação que estava despertando entre os vizinhos do burgo, o capitão
não moveu um músculo do rosto quando, por fim, abri a porta do saguão e saí à
rua. Alegrou-me muito ver que, debaixo dos imoderados raios do sol, a aparente
frescura do enorme militar suíço ficava um pouco arruinada, se distinguindo em
seu rosto, enganosamente juvenil, os sinais da passagem do tempo e umas pequenas
rugas junto aos olhos. Bom dia, falei, colocando o casaco. Aconteceu algo,
capitão? Bom dia, doutora, pronunciou em um corretíssimo italiano que, mesmo
assim, não escondia certa entonação germânica na pronunciação dos erres. Estou
esperando a doutora na porta do Arquivo desde as seis da manhã. E por que tão
cedo, capitão? Achava que era sua hora de começar a trabalhar. Minha hora de
começar a trabalhar é as oito, comentei com um tom desagradável. O capitão deu
um olhar indiferente a seu relógio de pulso. Já são oito e dez, anunciou frio
como uma pedra e igualmente simpático. Sim...? Bom, então vamos. Que homem tão
irritante! Acaso não sabia que nós os chefes sempre chegamos tarde? Faz parte
dos privilégios do cargo». In Matilde Asensi, O Último Catão, 2005,
Editora Dom Quixote, ISBN 978-972-202-904-9».
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