quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «O comboio cheio de malas e do receio tímido de estrangeiros em terra desconhecida, cuja lusitanidade se nos afigurava tão problemática como a honestidade de um ministro, rolou do cais para os musseques num gingar inchado de pombo»


Cortesia de jdact e wikipedia

C

«Luanda começou por ser um pobre cais sem majestade cujos armazéns ondulavam na humidade e no calor. A água assemelhava-se a creme solar turvo a luzir sobre pele suja e velha que cordas podres sulcavam de veias ao acaso. Negros desfocados no excesso de claridade trêmula acocoravam-se em pequenos grupos, observando-nos com a distracção intemporal, ao mesmo tempo aguda e cega, que se encontra nas fotografias que mostram os olhos voltados para dentro de John Coltrane quando sopra no saxofone a sua doce amargura de anjo bêbedo, e eu imaginava adiantes dos beiços grossos de cada um daqueles homens um trompete invisível, pronto a subir verticalmente no ar denso como as cordas dos faquires.

Pássaros brancos e magros dissolviam-se nas palmeiras da baía ou nas casas de madeira da Ilha ao longe, submersas de arbustos e de insectos, nas quais put… cansadas por todos os homens sem ternura de Lisboa ali vinham beber os últimos champanhes de gasosa, à maneira de baleias agonizantes ancoradas numa praia final, movendo de tempos a tempos as ancas ao ritmo de pasodoble de uma angústia indecifrável. Alferes pequeninos e de óculos, com ar competente de estudantes-trabalhadores escrupulosos, pastorearam-nos aos saltinhos na direcção de carruagens de gado que aguardavam num pontão coberto de detritos e de limos, pontão da Cruz Quebrada, lembra-se, onde os esgotos morrem estendidos aos pés da cidade, cães idosos que bolsam no capacho vómitos de lixo: em toda a parte do mundo a que aportamos vamos assinalando a nossa presença aventureira através de padrões manuelinos e de latas de conserva vazias, numa subtil combinação de escorbuto heróico e de folha-de-flandres ferrugenta.

Sempre apoiei que se erguesse em qualquer praça adequada do País um monumento ao escarro, escarro-busto, escarro-marechal, escarro-poeta, escarro-homem de Estado, escarro-equestre, algo que contribua, no futuro, para a perfeita definição do perfeito português: gabava-se de fornicar e escarrava. Quanto à filosofia, minha cara amiga, basta-nos o artigo de fundo do jornal, tão rico de ideias como o deserto do Gobi de esquimós. De modo que, de cérebro exaurido por raciocínios complicados, tomamos ampolas bebíveis às refeições a fim de conseguir pensar.

Apetece-lhe outro drambuie? Falar em ampolas bebíveis dá-me sempre sede de líquidos xaroposos, amarelos, na esperança insensata de descobrir, por intermédio deles e da suave e jovial tontura que me proporcionam o segredo da vida e das pessoas, a quadratura do círculo das emoções. Por vezes, ao sexto ou sétimo cálice, sinto que quase o consigo, que estou prestes a consegui-lo, que as pinças canhestras do meu entendimento vão colher, numa cautela cirúrgica, o delicado núcleo do mistério, mas logo de imediato me afundo no júbilo informe de uma idiotia pastosa a que me arranco no dia seguinte, a golpes de aspirina e sais de frutos, para tropeçar nos chinelos a caminho do emprego, carregando comigo a opacidade irremediável da minha existência, tão densa de um lodo de enigmas como pasta de açúcar na chávena matinal.

Nunca lhe aconteceu isto, sentir que está perto, que vai lograr num segundo a aspiração adiada e eternamente perseguida anos a fio, o projecto que é ao mesmo tempo o seu desespero e a sua esperança, estender a mão para agarrá-lo numa alegria incontrolável e tombar, de súbito, de costas, de dedos cerrados sobre nada, à medida que a aspiração ou o projecto se afastam tranquilamente de si no trote miúdo da indiferença, sem a fitarem sequer?

Mas talvez que você não conheça essa espécie horrorosa de derrota, talvez que a metafísica constitua apenas para si um incómodo tão passageiro como uma comichão efémera, talvez que a habite a jubilosa leveza dos botes ancorados, balouçando devagar numa cadência autónoma de berços.

Uma das coisas, aliás, que me encanta em si, permita-me que lho afirme, é a inocência, não a inocência inocente das crianças e dos polícias, feita de uma espécie de virgindade interior obtida à custa da credulidade ou da estupidez, mas a inocência sábia, resignada, quase vegetal, diria, dos que aguardam dos outros e deles próprios o mesmo que você e eu, aqui sentados, esperamos do empregado que se dirige para nós chamado pelo meu braço no ar de bom aluno crónico: uma vaga atenção distraída e o absoluto desdém pela magra gorjeta da nossa gratidão.

O comboio cheio de malas e do receio tímido de estrangeiros em terra desconhecida, cuja lusitanidade se nos afigurava tão problemática como a honestidade de um ministro, rolou do cais para os musseques num gingar inchado de pombo». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.

 Cortesia DomQuixote/JDACT

JDACT, António Lobo Antunes, Literatura, Cultura e Conhecimento, Escrita

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «Agora, percebe, estendido no convés numa cadeira de repouso, a sentir no progressivo suor do colarinho a implacável metamorfose do Inverno de Lisboa no Verão gelatinoso do Equador, mole e quente…»

Cortesia de jdact e wikipedia

B

«As senhoras do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair os visons da menopausa distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com a efígie de Salazar, acompanhadas de padre-nossos nacionalistas e de ameaças do inferno bíblico de Peniche, onde os agentes da PIDE superavam em eficácia os inocentes diabos de garfo em punho do catecismo. Sempre imaginei que os pelos dos seus púbis fossem de estola de raposa, e que das vaginas lhes escorressem, quando excitadas, gotas de Ma Griffe e baba de caniche, que abandonavam rastros luzidios de caracol na murchidão das coxas. Sentadas à mesa do brigadeiro, comiam a sopa com a ponta dos beiços tal como os doentes das hemorroidas se acomodam no vértice dos sofás, deixando nos guardanapos de papel pegadas de copas de bâton de que se evolavam ainda desgostos com as criadas e restos de tiradas patrióticas, e reencontrei-as no portaló do barco na manhã da partida, encorajando-nos com maços de cigarros Três Vintes e apertos de mão viris em que as falanges, falanginhas e falangetas se articulavam entre si por intermédio dos anéis de brasão: Sigam descansados que nós na rectaguarda permanecemos vigilantes.

E com efeito, observando bem, pouca coisa havia a recear de nádegas tão tristes, em relação às quais as cintas se conformavam com o papel secundário de fundas herniárias.

E depois, sabe como é, Lisboa principiou a afastar-se de mim num turbilhão cada vez mais atenuados de marchas marciais em cujos acordes rodopiavam os rostos trágicos e imóveis de despedida, que a lembrança paralisa nas atitudes de espanto. O espelho do camarote devolvia-me feições deslocadas pela angústia, como um puzzle desarrumado, em que a careta aflita do sorriso adquiria a sinuosidade repulsiva de uma cicatriz.  

Um dos médicos, dobrado no colchão do beliche, soluçava aos arrancos em palpitações irregulares de motor de táxi que se engasga, o outro contemplava os dedos com a atenção vazia dos recém-nascidos ou dos idiotas que lambem longamente as unhas com os olhos extasiados, e eu perguntava a mim próprio o que fazíamos ali, agonizantes em suspenso no chão de máquina de costura do navio, com Lisboa a afogar-se na distância num suspiro derradeiro de hino. Subitamente sem passado, com o porta-chaves e a medalha de Salazar no bolso, de pé entre a banheira e o lavatório de quarto de bonecas atarraxados à parede, sentia-me como a casa dos meus pais no Verão, sem cortinas, de tapetes enrolados em jornais, móveis encostados aos cantos cobertos de grandes sudários poeirentos, as pratas emigradas para a copa da avó, e o gigantesco eco dos passos de ninguém nas salas desertas. Como quando se tosse nas garagens à noite, pensei, e se sente o peso insuportável da própria solidão, nas orelhas, sob a forma de estampidos reboantes, idênticos ao pulsar das têmporas no tambor do travesseiro.

Ao segundo dia alcançamos a Madeira, bolo-rei enfeitado de vivendas cristalizadas a flutuar na bandeja de louça azul do mar, Alenquer à deriva no silêncio da tarde. A orquestra do navio resfolegava boleros para os oficiais melancólicos como corujas na aurora, e do porão onde os soldados se comprimiam subia um bafo espesso de vomitado, odor para mim esquecido desde os meios-dias remotos da infância, quando na cozinha, à hora das refeições, se agitavam à volta da minha sopa relutante as caretas alternadamente persuasivas e ameaçadoras da família, sublinhando cada colher com uma salva de palmas festiva, até que alguém mais atento gritava: Cantem o Papagaio Loiro que o miúdo está a puxar o vómito.

Em resposta a este aviso terrível, todos aqueles adultos desatavam a desafinar em uníssono como no naufrágio do Titanic, de beiços arrepiados sobre os dentes de ouro, uma criada batia tampas de tacho a compasso, o jardineiro fingia marchar de vassoura ao ombro, e eu devolvia ao prato um roldão de massa e arroz que me obrigavam a engolir, desta vez sem coro, sibilando em voz baixa insultos furibundos.

Agora, percebe, estendido no convés numa cadeira de repouso, a sentir no progressivo suor do colarinho a implacável metamorfose do Inverno de Lisboa no Verão gelatinoso do Equador, mole e quente como as mãos do senhor Melo, barbeiro do avô, no meu pescoço, na loja da Rua 1º de Dezembro, onde a humidade multiplicava o cromado das tesouras nos espelhos canhotos, o que com mais veemência me apetecia era que, tal como nesses tempos recuados, a Gija me viesse coçar as costas estreitas de menino num vagar feito da paciência da ternura, até eu adormecer de sonhos lavrados pelo ancinho dos seus dedos apaziguadores, capazes de me expulsarem do corpo os fantasmas desesperados ou aflitos que o habitam». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.

Cortesia DomQuixote/JDACT

JDACT, António Lobo Antunes, Literatura, Cultura e Conhecimento, Escrita,  

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Idade Média. Umberto Eco. «… o pacto firmado com os ostrogodos, só acolhidos depois da queda do império dos hunos, em 456-457, entre o rio Sava e o rio Drava. O domínio das populações germânicas sobre o território só gradualmente se torna mais completo…»

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Da Queda do Império Romano do Ocidente a Carlos Magno

A instalação dos bárbaros

«Diferente é, pelo contrário, a génese dos reinos romano-bárbaros no território continental. Estes reinos não surgem da ocupação por potências estrangeiras de uma zona precedentemente imperial, mas estabelecem-se no território na sequência de negociação de foedera, instrumentos diplomáticos em uso desde o alto império, por meio dos quais Roma se intromete nas questões internas das tribos germânicas residentes fora das estremas imperiais. A partir da época de Marco Aurélio (121-180, imperador desde 161), inicia-se, de facto, o costume de acolher, no território do império, bárbaros inquilini, isto é, cultivadores ligados à terra; no tempo de Diocleciano junta-se-lhe o uso de os receber como læti e gentiles, cultivadores semilivres, vinculados a obrigações militares e talvez instalados em terras públicas e organizados, ao contrário dos precedentes, em grupos etnicamente compactos.

De uma ulterior evolução destas práticas, que não constituíram, portanto, uma inovação tardo-antiga, resultam os foedera do século V, que preveem a instalação da população bárbara numa determinada zona do império, em que um soberano governa em vez do imperador e as tropas, bárbaras, devem para todos os efeitos ser consideradas de foederati romanos, em 451, por exemplo, os visigodos combatem ao lado dos romanos contra Átila (?-435) nos Campos Cataláunicos.

A legitimação do poder do rei provém de uma delegação imperial que se concretiza com a recepção não só do título de rex no interior das suas comunidades mas também de um cargo oficial romano que era, em geral, o de magister militum. Estas realidades só são, pois, possíveis no interior do império, onde o elemento bárbaro é sempre muito inferior numericamente ao romano. E também as estruturas fiscais e administrativas romanas são, geralmente, mantidas; a organização provincial, por exemplo, chefiada por duces, mantém-se no reino visigótico, conservando frequentemente nos seus postos os mesmos indivíduos, e, de um modo geral, é dos cargos romanos de dux e de comes que provêm os duques e condes francos e lombardos.

Entre os mais importantes foedera deste tipo são, certamente, de recordar: o que em 382 é negociado por Teodósio I com os godos, a quem é permitido instalar-se na Trácia depois do desastre de Adrianópolis; os dois pactos de 411 e 443, que dão origem aos dois reinos burgúndios; o pacto que em 418 concede aos visigodos, que já em 413 haviam sido autorizados a estabelecer-se na Gália Narbonense, a Aquitânia II, com a inclusão de alguns territórios da Novempopulânia e da Narbonense I, com capital em Toulouse, de onde se expandem até conquistar a Espanha sueva; o que em 435 é concedido aos vândalos, que depois o violam ocupando três províncias da África setentrional; e, por fim, o pacto firmado com os ostrogodos, só acolhidos depois da queda do império dos hunos, em 456-457, entre o rio Sava e o rio Drava.

O domínio das populações germânicas sobre o território só gradualmente se torna mais completo e independente do poder imperial, que continua formalmente superior no plano hierárquico: a autoridade dos reges é-lhes delegada durante todo o século V pela autoridade imperial. Isto vê-se, por exemplo, nas moedas e, em particular, na de ouro: os regna começam mais ou menos imediatamente a cunhar moeda própria, mas fazem-no em nome do imperador, e nem em caso de conflito com o império colocam nas moedas o nome do rex; quando muito, substituem o imperador da época por um dos anteriores, por exemplo, aquele que estabelecera originalmente o foedus. É o caso dos solidi ostrogodos de Totila e de Teia com o busto de Anastácio». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Idade Média. Umberto Eco. «Mas enquanto o império do Oriente permanece como Estado centralizado, embora com diversas vicissitudes e até com uma notável redução territorial no decurso do século VII…»

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Da Queda do Império Romano do Ocidente a Carlos Magno

Tendências secessionistas

«São sintomáticas deste estado de coisas as revoltas dos bagaudas, uma série de movimentos de revolta que se prolongam, com diversas fases agudas, entre os séculos III e V na zona gaulesa, da destruição de Autun (269) e intervenção militar de Maximiano (c. 240-310, imperador desde 286) às explosões de violência periódicas no século V e, por fim, o derradeiro episódio conhecido, a sua derrota, infligida em 453-454 pelo visigodo Frederico.

As revoltas dos bagaudas são nitidamente de carácter étnico: o próprio nome parece ter origem céltica, e o movimento caracteriza-se pela forte reivindicação de uma identidade indígena e rural contraposta à cultura urbana romanizada.

Reorganização do poder

Além disso, é frequentemente o próprio poder imperial que procede à repartição de territórios por diversas figuras reinantes, embora em graus diversos, dada a dificuldade de governar o império como uma unidade e de responder às especificidades, cada vez mais acentuadas, de macrorregiões diferentes (torna-se, principalmente, forte a diferença geral entre o Oriente e o Ocidente). Depois de a tetrarquia de Diocleciano (243-313, imperador de 284 a 305) se ter ocupado desta repartição, não só com a divisão do império em quatro partes mas também com a reestruturação do sistema das províncias e a sua articulação nas dioceses e nas prefeituras com o pretório,  estrutura piramidal que permite um melhor conhecimento das especificidades locais, quer nas micro quer nas macro-áreas, Constâncio II (317-361, imperador desde 337) decide nomear césares, primeiro, Galo e, depois, Juliano, consciente de que um poder central é de gestão difícil e favorece o aparecimento de usurpações.

Em seguida, Valentiniano I (321-375, imperador desde 364) é responsável por uma verdadeira repartição do império ao associar ao poder o seu irmão Valente (328-378, imperador desde 364), a quem confia o governo do Oriente para manter o domínio do Ocidente. A historiografia mostra cada vez mais como esta repartição, que já prefigura a grande cisão do império de 395, cria de facto duas verdadeiras realidades institucionais, em que, por exemplo, a promulgação de uma lei numa das partes não implica a sua automática validade na outra e os exércitos são transferidos de uma parte para a outra em caso de necessidade, mas mediante um pedido específico de ajuda, como se fosse outro Estado a pedi-la, conforme acontece durante as invasões góticas de 378, quando o exército ocidental, conduzido por Graciano, é mobilizado a pedido de Valente, mas não chega a tempo de impedir o desastre de Adrianópolis. Convém, portanto, atribuir um peso muito menor ao gesto de Teodósio (347-c. 395, imperador desde 379) que, prestes a morrer, deixa o império aos seus dois filhos: o Ocidente a Honório (384-423, imperador desde 393), o mais novo, sob a orientação de Estilicão, e o Oriente a Arcádio, o mais velho (377-c. 408, imperador desde 383). A ideia de Teodósio não é, pois, muito diferente da de Valentiniano, tanto mais que é dito explicitamente que o império continua a ser apenas um, divisis tantum sedibus.

O que realmente assinala uma viragem é a falta de aceitação no Oriente da supervisão de Estilicão, talvez desejada pelo próprio Teodósio sobre ambas as partes, que cria uma situação de conflito, e até armado, entre as duas metades e a ausência, deste momento em diante, de uma figura que reúna ambas as coroas na sua pessoa.

A instalação dos bárbaros

Mas enquanto o império do Oriente permanece como Estado centralizado, embora com diversas vicissitudes e até com uma notável redução territorial no decurso do século VII, em consequência das invasões árabes, a desagregação é rápida no Ocidente. Em 410, o ano em que as dificuldades políticas e militares do Ocidente conduzem ao saque de Roma por Alarico (c. 370-410, rei desde 395), é decidido abandonar a Britânia, que, entregue a si própria, não tarda a ser invadida por anglos, saxões e jutos (a partir de 449); estes, recebidos talvez pelas populações locais com base num pacto análogo aos que Roma firma na Europa continental, facilmente podem instalar-se neste território privado de autoridade estatal organizada». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,

Idade Média. Umberto Eco. «A própria separação de Oriente e Ocidente, consequência das migrações bárbaras, das expedições islâmicas, da separação e primado da Igreja de Roma em relação às orientais, da distinção cada vez mais nítida da Europa…»

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Hipóteses para uma periodização da Idade Média

«Especialmente se considerarmos na sua totalidade o cadinho dos povos e das civilizações que contribuíram para a formação inicial da Europa medieval, bem como os seus contactos recíprocos, até os limites do continente nos aparecem móveis e permeáveis, constituídos, como são, mais do que por barreiras, por zonas cujas partes mais remotas estão implicadas em recontros cada vez mais esporádicos.

A própria separação de Oriente e Ocidente, consequência das migrações bárbaras, das expedições islâmicas, da separação e primado da Igreja de Roma em relação às orientais, da distinção cada vez mais nítida da Europa em relação a Bizâncio, que constitui um traço distintivo da primeira Idade Média, não foi, contudo, tão nítida como se poderia crer por um exame que levasse em conta, principalmente, a redução das vias de comunicação e do tecido urbano, a decadência dos portos e do tráfego, o desaparecimento das escolas e o aumento das distâncias no plano político e cultural. Basta pensar que Carlos Magno e até os otões se aperceberam da necessidade de manter relações com Constantinopla, que os árabes, como é bem sabido, transmitiram aos europeus o seu saber e o antigo, que os muçulmanos foram por várias vezes chamados por cristãos a socorrê-los contra outros cristãos e concordaram frequentemente com os poderosos locais em lutar com os seus correligionários, que os mouros penetraram em vastos territórios, como a Península Ibérica e não só, com forças reduzidas e confiados no apoio de populações deprimidas e oprimidas e que não faltaram casos, alguns deles importantes, de casamento entre fiéis de religiões diferentes.

É exactamente nesta vertente que estão em curso os estudos talvez mais inovadores, que se propõem mostrar a permeabilidade do islão e contribuir para abater as barreiras religiosas e culturais hoje ventiladas, sem por isso renunciar a reclamar o relevo da específica tradição europeia, baseada numa particular pluralidade de formas sociais e políticas e na sua variabilidade.

Da Queda do Império Romano do Ocidente a Carlos Magno

A desagregação do Império Romano do Ocidente é o termo de um percurso histórico de longa duração, já reconhecível no século III, de regionalização dos territórios imperiais, que cada vez mais se configuram como zonas autónomas e não integradas. A deposição de Rómulo Augústulo em 476 é apenas um momento, talvez o mais visível no plano historiográfico, desta longa transição.

Tendências secessionistas

A fragmentação política do Império Romano não é o resultado directo da deposição do último imperador do Ocidente em 476, data convencional do início da Idade Média. Com efeito, já dois séculos antes se manifestaram tendências centrífugas na estrutura imperial: no decurso da crise do século III e em particular durante o reinado de Galieno (c. 218-278, imperador desde 253), o império encontra-se dividido em três grandes troncos autónomos.

No Oeste, a revolta de Póstumo (?-c. 269, imperador de 260 a 268) dá origem à constituição de um império gálico (formado pela Gália, a Península Ibérica e a Britânia) que dura 13 anos sob o próprio Póstumo, Mário (?-269, imperador desde 268), Vitorino (?-c. 270, imperador desde 268) e Tétrico (?-273, imperador desde 271). No Oriente, pelo contrário, o poderio económico-comercial de Palmira leva à constituição de um verdadeiro império centrado nas cidades caravaneiras, primeiro sob Odenato (?-267, rei desde 258) e depois sob Vabalato (? -273, rei desde 267), mas governado principalmente, segundo dizem as fontes, por Zenóbia, mulher do primeiro e mãe do segundo (rainha de 267 a 273). Só Aureliano (214/215-275, imperador desde 270) consegue recuperar os dois reinos secessionistas em 273 e reconstituir a unidade do império. Mas já a partir desse momento, e ainda mais durante o século IV, se mostra cada vez com maior evidência a presença de ímpetos centrífugos e, mais em geral, de uma regionalização em zonas cada vez mais autónomas umas das outras e menos integradas num conjunto.

São disso prova as várias usurpações, cada vez mais ligadas a um determinado território. O objectivo é, com frequência, a constituição de reinos secessionistas e o reconhecimento de uma autoridade igual à dos imperadores já existentes: é o caso, por exemplo, da rebelião de Caráusio (imperador de 286 a 293), que domina a Britânia e a Gália setentrional, herdadas na sua morte por Aleto (?-296, imperador desde 293) e depois por Constâncio Cloro (c. 250-306, imperador desde 293), mas também por Magnêncio (c. 303-353, imperador desde 350), Magno Máximo (c. 335-388, imperador desde 383) e Constantino III (?-411, imperador desde 407)». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,  

sábado, 17 de fevereiro de 2024

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «Tem agilidade e graça, esta cantiga. Mas a que segue tem fúria: Quem passou a serra e não quis servir a terra, maldito seja! O que levou dinheiros e não trouxe cavaleiros, maldito seja!»

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«Pero Mafaldo vivia no século XIII e deve ser contado entre os trovadores alfonsinos da côrte castelhana. Escreveu um serventês a despedir-se da verdade e poetou contra Pero de Ambroa e a famigerada Balteira. Pero Mafaldo, ironicamente, declara que irá mudando e mentindo. Toda a gente faz o mesmo. Falar verdade ao amigo? Não! Quem mente ganha com isso. Juro, pois, e digo que vou separar-me da verdade e querer mal a quem bem quero. Hei-de prosperar assim, como cavaleiro que sou. Que hei-de eu fazer, se a verdade para nada me serve nem aumenta a minha honra? Dai-me um conselho, por caridade. Assim vai a minha vida: Se minto ao meu amigo e ao meu senhor, medra o meu proveito e cresço em importância. Sempre a eterna ironia: só medram os malandros e os hipócritas.

Um trovador desconhecido, mas de elevada categoria técnica e boa inspiração, deixou-nos uma poesia híbrida, de cantar de amor e de maldizer, contra o mundo e os homens. Também ele se lembra dos bons velhos tempos: Quem viu o mundo de antigamente e o vê agora, que há-de querer, senão desterrar-se algures? Mas o mundo é só um e este é falso. Para onde foram a mesura e a grandeza? Onde pára a verdade? Quem é leal ao seu amigo? Que se fez do amor e do trovar? Porque anda a gente triste e sem cantar? Ainda assim, vivo por amor duma senhora a quem muito quero, dos tempos em que amor havia. Fiquem, pois, a saber porque não me vou algur esterrar, / se poderia melhor mund’achar. E este pensamento vai batendo no final de cada estrofe, como condenação inapelável dos tempos que já não são nossos.

Até aqui, temos a impressão dum cortejo poético de velhos pranteadores. Contudo, esse cortejo não pára na Idade Média e salta aos olhos, por exemplo, na França do século XIX, mesmo entre escritores audazes e criadores. Alfred Musset condenava a geração nova por ser inculta, sans gaitê et sans amour. Chateaubriand escrevia, em 1831: Tout paraît usé, art, littérature, moeurs, passion; tout se détériore.

Lamartine afinava pelo mesmo diapasão e declarava que a França apodrecia numa esterqueira e tudo se desgastava e morria. Eles não pressentiam, entre tantos outros escritores, o advento de Baudelaire e do frisson nouveau que depois faria estremecer Victor Hugo.

Afonso X e os Soldados

Afonso X, o Sábio, está no centro dum ciclo satírico, onde a poesia é meio de ataque e de defesa, como os panfletos de hoje em dia. Atacou, atacaram-no. E cada um tinha, em geral, as suas razões e os seus pontos fracos. Às vezes, nada tão lúcido como o ódio.

Ainda infante, Afonso X troça dos maus conselhos do mordomo Rodrigo e dos peões todos calvos e sen lanças e con grandes çapatões. Os versos do rei valiam mais do que esta peonagem. E a sua indignação desafoga-se contra os que recusaram acompanhá-lo na guerra, ao sul, contra os muçulmanos:

Nunca eu cinja espada em boa bainha, se Pero Espanha, ou Pero Galinha, ou Pero Galego forem comigo! Outrem me acompanhará. Mendo Candarei pretextara também qualquer dificuldade e não fora com ele. Fuão deixou-o sozinho na guerra da Andaluzia e o rei sentia vontade de mandar ao demo a honra deste mundo, as armas e o batalhar. O que faz chorar um homem não é brincadeira nenhuma! Chorar e rir, por exemplo nesta sátira contra os guerreiros de menor categoria (coteifes), alguns deles a tremer no meio do Verão, diante dos cavaleiros mouros de Azamor:

O genete

pois remete

seu alfaraz corredor:

estremece

e esmorece

o coteife con pavor.

[…]

Vi coteifes de gran brio

eno meio do estio

estar tremendo sen frio

ant’os mouros d’Azamor;

e ia-se deles rio

que Auguadalquivir maior

Tem agilidade e graça, esta cantiga. Mas a que segue tem fúria: Quem passou a serra e não quis servir a terra, maldito seja! O que levou dinheiros e não trouxe cavaleiros, maldito seja! O que recebeu grande soldada e nunca fez cavalgada, se é rico-homem ou há mesnada, maldito seja! Não se trata de cantiga para rir.

Temos, aqui, uma invectiva, algo da maldição dum profeta atraiçoado e sozinho. Invectiva cheia de troça, como aliás noutra cantiga quase logo a seguir: Quem da guerra levou cavaleiros e foi guardar dinheiros à sua terra; quem não dava pão a comer aos soldados; quem, por medo, foi para casa beber vinho; quem fugiu da fronteira ou andou a roubar os mouros e foi para a sua terra roubar cabritos, esse non ven al maio. Quer dizer, não vem à revista da tropa, ao alardo. Iam para a guerra a fingir. E alguns levavam pendão, mas não levavam caldeira. N In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT

JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões, 

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «Pero Gómez Barroso, amigo de Afonso X e português, compôs outro serventês a dizer mal dos tempos de agora e bem dos tempos de outrora: ca vej’agora o que nunca vi / e ouço cousas que nunca oí»

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«As louvaminhas e cantares de galhofa recebem honras e poder. Nos lugares onde nobres ditos se ouviam, vejo eu expulsar gente honrada. Os que dizem mal, a esses acolhem-nos e louvam-nos com muito amor. Dantes dominava o saber, tinham formoso lugar a paz e a cortesia, quando a alegria morava no mundo. Mas ela foi-se embora, dizendo: dia a dia, hei-de ir faltando!

Chegara a sua hora, fugia para se esconder. Bem mereceu este descordo as honras de H. R. Lang, em The descort in old portuguese and spanish Poetry, e não menos de Luciana Stegagno Picchio, em Martin Moya.

Poesie. É a revolta contra a decadência cultural e contra o triunfo mesquinho dos vícios, à sombra de mecenas estúpidos.

Adiante, num serventes, conta-nos o poeta uma estória que serve de parábola: Depois de muito andar, entrei num sítio onde nem a lealdade, nem a boa manha, nem o juízo nem o saber tinham apreço de ninguém. Aí só prosperava quem gabava tudo o que o senhor da terra fazia, quem o lisonjeava, mesmo que o visse andar a semear sal. Quem ali chegar, sem mentir nem trocar o mal pelo bem, livre-se como eu me livrei. Ora, quando eu lá estava, sonhei muitas vezes que uma cerceta agarrava a poupa pelo penacho da cabeça. A cerceta, que significa ela? E como foi capaz de prender a poupa?

Quem poderá interpretar-me este sonho? Rodrigues Lapa faz deste sonho um símbolo de como os grandes poderiam ser dominados pelos pequenos: a certeza, mais forte, começou por arrancar a crista à pôpa, que acabou por vencê-la. Teríamos um incentivo à luta dos fracos contra os fortes opressores. Propomos outra hipótese. A cerceta (ave palmípede, mais pequena do que o pato vulgar, mas, ainda assim, mais forte do que a poupa) segurou bem firme a cresta da poupa e dominou-a. E esta última simboliza, talvez, os que se tiram porcamente das dificuldades. Com efeito, ajeitam-se ao querer dos fortes e estes prendem-nos pela gloríola da amizade e dos interesses, representados no lindo penacho de plumas. Por isso aconselha Martin Moxa a que não se desquitem como eu vi quitar alguen. Em qualquer hipótese, temos, neste serventês, a apologia de dignidade humana.

Pero Gómez Barroso, amigo de Afonso X e português, compôs outro serventês a dizer mal dos tempos de agora e bem dos tempos de outrora: ca vej’agora o que nunca vi / e ouço cousas que nunca oí. Que nele haja ou não objectividade externa, isso parece-nos secundário. É na objectividade interna desse estado de alma que enraíza a beleza triste deste pranto dos tempos de agora: Nunca vi andar assim o mundo. O outro era diferente e é desse que gosta o meu coração! Nada me importa morrer, pois em nada acho gosto nen sei amigo de que diga ben. E no fim de cada estrofe, ouve-se o mesmo protesto de inadaptação à vida, na velhice: ca vej’agora o que nunca vi / e ouço cousas que nunca oí.

É a angústia dum homem que ficou sozinho no meio da nova multidão anónima e sem rosto. Esta sátira aos tempos novos, repetem-na, em prosa, os velhos de todas as gerações, mesmo simples camponeses. Os amigos morreram e os costumes são outros». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT

JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «… ajoelhou-se-lhe em frente e descalçou-lhe o pé direito como para o beijar e, dissimuladamente, correu-lhe com a mão pelos dedos e logo achou o calo que buscava, tão grande que parecia um sexto dedo…»

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A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo

«Apresentados todos e acabados de lhe beijarem as mãos, pareceu-lhes bem que se passassem a casa de Sebastião Figueira, que era duas ruas acima. Foram, mas pelo muito tráfego, não lhe pareceu bem a el-rei e pediu-lhes que se reunissem em rua mais escusa, por via do perigo que todos corriam. Dirigiram-se então a casa de dom João Castro.

Aquela noite saiu o mar Adriático do seu leito e já corria por muitas ruas de Veneza. Tiveram de fazer o percurso em gôndolas, pelas quais se distribuíram, que eram muitos. Temos de prevenir frei Estêvão Sampaio, lembrou Nuno Costa sem embarcar. Ide seguindo, que eu irei chamá-lo ao convento dos beneditinos.

Na gôndola da frente, com el-rei iam dom João e dom Cristóvão. Coisa nunca vista, senhores!, dizia o gondoleiro. E isto é só o princípio. E olhai o prejuízo que já está a causar!... Lojas alagadas, andavam os comerciantes, à luz de archotes, a tentar salvar ricos panos de seda, telas, brocados, peças de cristal finíssimo, especiarias... Isto é dano para mais de vinte mil cruzados. Podeis acreditar... Achais que as águas ainda vão subir mais?, perguntou el-rei. Por este andar! Os meus cabelos brancos não se lembram de cheia assim... E se chega ao tesouro da basílica? Nem quero pensar...

É esta a casa, disse dom João. Quem me houvera de dizer, dizia o gondoleiro, parando a uma porta, que havia de trazer a barca a navegar por cima de terra! Tende cuidado ao sair, que a maré já está muito alta. Saltaram à água, que lhes deu pela cintura, dom João e dom Cristóvão, fizeram Cadeira com os braços para que el-rei se não molhasse.

Arrivederci, buon uomo, disse el-rei. Arrivederci, signor, respondeu o gondoleiro, olhando o homem que de costas, sentado nos braços dos outros dois, se sumia casa adentro. Estas palavras e esta voz!, murmurou persignando-se e afastando-se.

Assentou-se el-rei ao lume e disse: Senhores. Sei muito bem que tendes uma lista dos sinais naturais do meu corpo, trazida de Lisboa por um dos vossos companheiros. Significa isso que vos quereis inteirar de ser eu ou não o vosso rei... Senhor, nós..., ia a entremeter-se dom Cristóvão, mas um gesto de el-rei calou-o: Pois Nosso Senhor foi servido de mos estampar no corpo, por eles se justificará a verdade que minhas palavras por si sós não podem autenticar... e, levantando-se, ante o espanto interdito de todos, despiu seu jubão, sua camisa, suas meias-calças e mostrou honestamente o seu corpo. Pôs-se de joelhos, para que vissem que era mais curto da parte esquerda que da direita... Dai-me a vossa chinela, dom João... Dom João tirou a chinela do pé e entregou-lha. Meteu-a el-rei debaixo do joelho esquerdo e logo o corpo se lhe endireitou.

Fez menção de tirar os cueiros que lhe tapavam as vergonhas, para que nada do seu corpo ficasse por vistoriar, mas não lho permitiu o respeito que os presentes tinham à sua qualidade real. De dor e compaixão, alguns não continham algum soluço abafado. Não nos tenhais, meu senhor, disse dom João Castro com a voz embargada, por tão desconfiados. Nós estamos crentes da verdade.

Cristo, respondeu el-rei, para inteirar a um só homem, descobriu-se e levou-o a meter a mão no lado chagado do seu peito. Então eu, um pecador, não hei-de dar satisfação de mim a tantos de vós?... e, chamando um por um, tomava-lhes das mãos e levava-os a palpar-lhe as feridas recebidas na batalha: ... aqui... isso sim... uma pelourada no bucho do braço esquerdo... não, não, não fiquei aleijado... aqui na sobrancelha direita, de um golpe de cimitarra... aí, aí, sobre a cabeça, da parte esquerda, de uma porrada com maça de armas que fez amolgadela no casco... e a mão direita maior que a esquerda... os dedos longos, unhas compridas... e o braço direito mais comprido que o esquerdo... e o corpo, dos ombros à cintura, dobrado e curto, e da cintura aos joelhos alongado... e a perna direita mais que a esquerda já sabeis... vede aí, no ombro esquerdo, junto ao fio do lombo, um sinal... pardo, com cabelos, como um vintém... e no direito, ao pé do pescoço... outro sinal, preto, como uma unha... e lentilhas nas mãos e sardas... não se enxergam bem... e as pernas encurvadas...

Tornou-se el-rei ao lume e assentou-se entre aqueles seus portugueses radiantes, de sorriso aberto. Dom João Castro ajoelhou-se-lhe em frente e descalçou-lhe o pé direito como para o beijar e, dissimuladamente, correu-lhe com a mão pelos dedos e logo achou o calo que buscava, tão grande que parecia um sexto dedo, enquanto ia falando: Para quem tantos anos já não falava português, pronunciais bem, meu senhor, embora com algum acento estranho, palavras que os estrangeiros não conseguem pronunciar.

Esforço-me por recuperar a boa fala... Mas vejo que no meu pé encontrastes o meu calo. Tendes ainda dúvida?... Oh, meu senhor! ... olhai aqui, dom João, e abria a boca quanto podia, na queixada direita... dom João espreitava: faltava a el-rei um queixal». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,

Já Ninguém Morre de Amor. Domingos Amaral. «… sem saber que com esse acto fundava uma estirpe nova e endiabrada, os Palma Lobo, brancos com sangue negro, marcados para sempre por enormes pénis, que ao longo das suas existências lhes iriam dar tanto profundas alegrias…»

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Roberto Antunes Palma Lobo, 1881-1916

«Ao terminar a leitura deste caso, julguei que o contributo do médico inglês para a minha investigação terminara ali. Engano meu. O caso seguinte era a descrição do recém-nascido, em especial dos seus inesperados atributos físicos. Roberto Antunes, o primeiro homem da estirpe dos Palma Lobo, era dotado de um pirilau enorme.

Há mais de vinte anos que conhecia Salvador, e já o vira nu em muitas ocasiões, desde banhos de mar a aventuras de grupo com mulheres. Portanto, sabia que Salvador era um privilegiado da natureza. Julgo mesmo que a origem da sua felicidade era uma alegria primária e básica que lhe vinha do facto de ter o sexo poderoso e generoso. Ao longo da vida, desde a adolescência, Salvador aproveitara a vantagem que tinha sobre os outros homens. O seu pénis era motivo de ciumeiras e zangas entre raparigas. Houve épocas em que elas faziam fila para poderem tocar naquele magnífico exemplar, naquele totem da virilidade. E ele satisfazia-lhes a curiosidade.

Sim, eu sabia disso. O que eu não sabia era que esse património era hereditário, um sinal de família, um dote do sangue e da genética. Só ao ler o relato do dr. Charles Scholes, descrevendo o enorme e escuro membro de um recém-nascido que viera ao mundo em 1881, é que compreendi a génese do orgulho sexual do meu amigo.

O médico inglês, que seguira a saúde da criança até ela ter três anos, idade com que foi enviada para Portugal para casa de uma avó, ficara impressionado pelo tamanho invulgar do músculo masculino do pequenino Roberto Antunes Palma Lobo. Descrevia-o como uma anormalidade numa criança tão jovem. E acrescentava que dispunha de fáceis reflexos, ficando erecto com rapidez.

Contudo, as novidades não se limitavam a esta observação. O dr. Charles Scholes reconhecia que fora devido a este inesperado facto que se esclarecera a misteriosa gravidez de Efigénia. Quando, umas semanas depois da morte da mãe, voltara à casa para examinar a saúde do bebé, o inglês ouvira uma criada negra, que amamentava o menino, comentar que com um pénis daquele tamanho ele só podia ser obra do Kalanga, um criado que trabalhava nos jardins da casa. O rapaz, um negro de vinte e tal anos, era alto e viçoso, falava mal o português e começou por negar ao médico que tivesse cometido qualquer pouca-vergonha com dona Efigénia, que Deus a tinha. Além disso, o bebé era branco como a mãe, e, portanto, não podia ser filho de um negro. Quem não ficou satisfeita com esta explicação foi a velha criada, que espremeu o Kalanga até ele acabar por reconhecer o que fizera a Efigénia.

Na noite da trágica morte de Roberto Carvalho Lopo, quando ele chegara gravemente ferido a casa, Efigénia passara várias horas desmaiada, devido à comoção. Ficara deitada na cama do seu quarto, longe da sala, onde estavam os outros criados. A janela do quarto estava aberta, pois fazia muito calor nessa noite. O Kalanga vira a patroa deitada, seminua e sem sentidos, e subira-lhe uma urgência pelo corpo. Entrou no quarto e, de forma apressada, baixou as calças e entrou dentro da patroa desmaiada, que nem se mexeu. O acto foi rápido, mas pelos vistos suficiente para deixar uma semente nas entranhas de Efigénia. O mistério da sua gravidez impossível estava resolvido.

Afinal, Efigénia não era uma adúltera aldrabona, como o outro livro a descrevia, e fora mesmo violada, engravidando enquanto estava desmaiada, e morrendo sem saber quem era o pai da criança. Porém, talvez o dr. Scholes não tivesse contado oralmente a história da mesma forma que a escrevera, pois o episódio comentava-se anos mais tarde como uma anedota, sendo a senhora descrita na sátira local como a Desmaiada.

Pouco mais havia a fazer em Moçambique. Aproveitei os últimos dias na cidade para visitar o cemitério onde estavam enterrados Efigénia Palma e Roberto Lobo, lado a lado, como marido e mulher que sempre foram em vida. Tirei umas fotografias à campa para juntar ao meu trabalho e, na tarde desse mesmo dia, ainda consegui visitar a casa apalaçada onde os trisavôs de Salvador tinham vivido e morrido, e cujos proprietários eram agora uns sul-africanos. Fotografei o quarto de Efigénia, que dava para o jardim, tendo em primeiro plano a grande janela por onde entrara o furtivo Kalanga, para possuir em segredo uma mulher desmaiada, sem saber que com esse acto fundava uma estirpe nova e endiabrada, os Palma Lobo, brancos com sangue negro, marcados para sempre por enormes pénis, que ao longo das suas existências lhes iriam dar tanto profundas alegrias como cavadas tristezas...

São agora onze da noite neste hospital de Lisboa, onde aguardo com tranquilidade a chegada do fim da vida do meu melhor amigo Salvador. Está muito calor e não sei mais quanto tempo vou ter de esperar. As enfermeiras de batas verdes vão passando por mim e dizem: Não há novidades... Nada? Nada». In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN 978-972-461-802-9.

Cortesia de OficinadoLivro/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Literatura, Amor,

Poesia. Dia do Mar. Sophia Mello B. Andresen. «Nasceram, como um fruto, da paisagem, a brisa dos jardins, a luz do mar, o branco das espumas e o luar»

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Dionysos

«Entre as árvores escuras e caladas

O céu vermelho arde,

E nascido da secreta cor da tarde

Dionysos passa na poeira das estradas.

A abundância dos frutos de Setembro

Habita a sua face e cada membro

Tem essa perfeição vermelha e plena,

Essa glória ardente e serena

Que distinguia os deuses dos mortais».

Os Deuses

«Nasceram, como um fruto, da paisagem,

A brisa dos jardins, a luz do mar,

O branco das espumas e o luar

Extasiados estão na sua imagem».

In Sophia Mello Breyner Andresen, Dia do Mar, Editora Caminho, 2009, ISBN  978-972-211-586-5-

Cortesia de ECaminho/JDACT

JDACT, Sophia Mello B. Andresen, Poesia, Cultura,

Já Ninguém Morre de Amor. Domingos Amaral. «… o maior segredo, e parecia torturada de angústia, à beira de perder a razão. Como explicação, o dr. Scholes avançava com a hipótese de Efigénia estar grávida do marido há mais tempo do que pensava»

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Roberto Antunes Palma Lobo, 1881-1916

«Reflecti alguns minutos sobre o que lera, e continuei depois à procura de outras referências, mas naquele livro não encontrei mais. Abri então o segundo livro, uma descrição sobre a colónia portuguesa que habitava a capital moçambicana nos últimos trinta anos do século XIX. O português era um pouco gongórico e nem sempre muito objectivo, mas o relato parecia-me fidedigno. No entanto, ao longo das primeiras cento e cinquenta páginas não encontrei nenhuma referência útil. Até que, inesperadamente, o autor se refere jocosamente à história de uma tal Desmaiada, que morrera ao dar à luz um filho, e que jurava não saber quem era o pai da criança.

Seria Efigénia a Desmaiada?

Umas páginas à frente, o cronista voltava a falar na Desmaiada, desta vez no âmbito de um capítulo sobre miscigenação com os locais. Segundo ele, uma senhora de nome Efigénia Palma, casada com um pirata português que morrera assassinado, tentara convencer a colónia de que não sabia de quem engravidara! O relato prosseguia, recordando que o marido da senhora em causa morrera mais de nove meses antes do nascimento do filho, e que ela sempre dissera que desmaiara na noite da morte do marido, e que alguém, misteriosamente, a tinha engravidado, aproveitando-se do facto de ela estar desfalecida.

Como era óbvio, o cronista não acreditava naquela versão, e acrescentava que, nove meses mais tarde, tornou-se evidente que o pai dela era um criado de Efigénia. A criança tinha marcas de raça negra, em locais pouco próprios, como reparara o médico, o sr. dr. Charles Scholes. Fora ele quem, depois de interrogar os criados, descobrira ter sido um deles, um tal Kalanga, que engravidara a senhora.

Fiquei boquiaberto com a descrição. Pelos vistos, aquele episódio era motivo de chacota na época, sendo apresentado como exemplo de uma trapaça feminina. Efigénia era descrita como uma mistificadora inventiva, que tentara esconder as suas relações adúlteras com um obscuro empregado negro. O único pormenor que não ficava esclarecido eram as marcas evidentes de raça negra, em locais pouco próprios. De que falava o cronista? Nas imagens que vira de Roberto Antunes não existiam essas evidências, e obviamente que aquela referência a locais pouco próprios era sugestiva de que se tratava de marcas que provavelmente não seriam captadas pela objectiva de nenhum fotógrafo...

Como desvendar esta nova questão? Não havia mais nada nos dois livros que me pudesse elucidar sobre pormenores desta natureza. No dia seguinte, devolvi ao professor Chivunga os dois exemplares emprestados. Agradeci-lhe a ajuda, e fiz um pequeno resumo das descobertas. Ao ouvir o nome do dr. Charles Scholes, o historiador franziu a testa: Um inglês, não era? Dirigiu-se ao seu computador, enquanto ia dizendo: Esse nome não me soa estranho. Deixe-me aqui fazer uma pequena busca... Sentou-se e teclou o nome do inglês. Esperei até que ele exclamou: Cá está! O que descobriu? Há um livro escrito pelo próprio médico. São os relatos dos casos que tratou enquanto viveu em Moçambique. É em inglês, mas há um exemplar na Biblioteca Nacional. Sabe onde é?

Na manhã do dia seguinte, sentei-me na grande sala da biblioteca, com o livro do médico inglês aberto à minha frente. Era um inventário dos principais casos que tinha tratado durante a sua estada em Lourenço Marques, entre 1875 e 1885. Listava uma profusão de doenças e centenas de pacientes. Malárias, cóleras, sífilis, tuberculoses e muitas outras mazelas eram descritas com algum pormenor, bem como partos, apendicites ou outras operações.

A dada altura, o dr. Charles Scholes narra a morte de Roberto Carvalho Lobo, confirmando que ele sucumbira na sequência dos ferimentos de balas, num pulmão e no abdómen, perdendo muito sangue. Quando chegara a sua casa, já nada havia a fazer pelo pobre homem, a não ser aguardar a sua morte. Numa curta nota final, o dr. Scholes referia que uma comoção muito forte se apoderara da esposa, Efigénia, tendo ela desfalecido e perdido os sentidos durante toda a noite.

Uns meses depois, uma nova entrada no livro dedicava-se a Efigénia. O médico, cuja escrita espelhava a surpresa que o episódio lhe deixara no espírito, fora chamado de novo à casa da senhora, para certificar a sua inesperada gravidez. Efigénia, que andava de luto, confessara-lhe que se tratava de uma gravidez impossível, pois ela não dormira com o marido nos últimos meses antes da sua morte. Portanto, não podia estar grávida! Embora espantado com aquele relato, o dr. Scholes confessava que Efigénia lhe parecera honesta e profundamente perturbada por aquele estranho facto, quase se comparando a Nossa Senhora, que concebera por milagre. Pedira-lhe, aliás, o maior segredo, e parecia torturada de angústia, à beira de perder a razão. Como explicação, o dr. Scholes avançava com a hipótese de Efigénia estar grávida do marido há mais tempo do que pensava.

Trinta páginas à frente, o dr. Scholes fazia o relato do parto da criança. Notando que fora uma gravidez complexa, que enfraquecera muito uma mãe cujo espírito já estava debilitado pela angústia de não compreender como concebera, o dr. Scholes relembrava a extrema complexidade do nascimento da criança, que demorara muito tempo a dar a volta dentro da barriga da mãe, provocando a esta várias hemorragias e muita dor. Para mais, nascera com o cordão umbilical enrolado ao pescoço, o que quase a asfixiara e muito contribuíra para o enfraquecimento da mãe. Efigénia foi vítima de inúmeras infecções e acabaria por falecer apenas vinte e quatro horas depois do nascimento do filho, para grande desalento do dr. Scholes». In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN 978-972-461-802-9.

Cortesia de OficinadoLivro/JDACT

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Já Ninguém Morre de Amor. Domingos Amaral. «Próximo do Natal de 1880, o negociante zangou-se com os seus associados piratas, pois estes andavam-lhe a destruir os lucros, atacando os seus barcos em alto mar»

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Roberto Antunes Palma Lobo, 1881-1916

«Recordei as palavras de Salvador naquela tarde em Grândola: Há quem duvide de que o meu trisavô fosse o pai da criança... Provavelmente, a suspeita nascera devido a este estranho registo.

Pedi a dona Fátima que me fotocopiasse as três certidões, não sem antes reparar num pormenor. Nos três registos, a testemunha era a mesma, um tal dr. Charles Scholes, decerto o médico que assistira àquelas situações extremas. Era costume os registos serem feitos por um médico naqueles tempos?, perguntei a dona Fátima. Não sei, meu filho.

Contei-lhe a história e ela sorriu e fez um ar matreiro. Debruçou-se no balcão, rechonchuda e alegre, aproximou a sua cara da minha e disse-me, baixando a voz, como se me fizesse uma confidência secreta: Sabe, meu filho, não eram só as pretas que engravidavam dos brancos, às vezes as portuguesas também tinham filhos dos pretos... Para mais, o marido morrera... Ergueu as sobrancelhas: Podia ser um empregado da casa. Acha, perguntei. O que lhe valeu foi ter morrido ao dar à luz, comentou ela. - Caso contrário, teria sido uma escandaleira...

Dona Fátima deu uma gargalhada divertida e lá foi, bamboleando as suas formas redondas, até à máquina fotocopiadora. Quando regressou, entregou-me as fotocópias e desejou-me sorte. Se precisar de alguma coisa mais, meu filho, volte cá, que eu estou sempre às ordens!

Saí do edifício excitado. A acreditar no registo oficial, o primeiro dos Palma Lobo não era na verdade Lobo, pois não era filho do marido de Efigénia, mas sim de um negro, o que fazia nascer naquela família uma linhagem bastarda e, tal como Salvador insinuara, vagamente pecaminosa... A lenda dos Palma Lobo arrancava com um episódio arrasador, espectacularmente picante! Apeteceu-me de imediato telefonar para Portugal, para relatar ao meu amigo as novidades, mas ele pedira-me que não actuasse assim, e portanto fui nessa noite sair em Maputo, sozinho e bem-disposto, com a sensação de que estava na posse de um verdadeiro segredo de família. Mal eu sabia que era apenas o primeiro de muitos...

Quem seria o misterioso Kalanga que colocara a sua semente no ventre da trisavó Efigénia? Passei a noite às voltas na cama, a pensar neste intruso. Nas cartas do bisavô Roberto, que lera em Lisboa, não existiam referências a nenhum Kalanga. E, nas fotografias que vira, não notara nas suas feições nenhum vestígio da raça do seu suposto pai. Era moreno, mas não tinha a tez especialmente escura, nem traços fisionómicos que indicassem ser filho de um negro. Seria possível que nunca se tivesse sabido quem era o seu verdadeiro pai? Mas, então, como explicar a vaga suspeita de Salvador? Quem descobrira o pecado original dos Palma Lobo?

A meio da manhã do dia seguinte, recebi um telefonema do professor Agostinho Chivunga. O historiador explicou-me, na sua voz forte e pausada, que descobrira alguns livros que me podiam interessar e sugeriu que passasse pelo seu gabinete da universidade a meio da tarde. Assim fiz. Quando lá cheguei, aquele homem enorme entregou-me dois antigos livros. O primeiro intitulava-se Relato das Ocorrências Marítimas nas Costas de Moçambique, 1860-1890, e o segundo tinha como título A Vida Social e Política na Colónia de Moçambique entre 1870 e 1900. Agostinho Chivunga explicou que ambos os autores eram portugueses que tinham vivido em Lourenço Marques na época e, portanto, os relatos deviam ser fidedignos. E acrescentou: Penso que nos dois casos há algumas pequenas referências à família Palma Lobo. Regressei ao hotel e deitei-me na cama do meu quarto, decidido a devorar os dois manuscritos. Comecei pelas ocorrências marítimas. Tratava-se de uma descrição do comércio nas costas da colónia, com referências às embarcações, à actuação dos barcos de guerra dos variados países, e também aos piratas. Pude confirmar que a sua presença era habitual, e que produziam elevados estragos à navegação. A dada altura, o meu coração agitou-se quando se me deparou uma referência a um contrabandista famoso chamado... Roberto Carvalho Lobo.

O trisavô de Salvador era um mercador que vivia em Moçambique, por volta de 1880. Negociava com os pescadores, com as tribos da costa, com os alemães da Tanzânia e os bóeres da África do Sul. Numa prosa nada abonatória, o autor do livro relatava que Roberto se metia em trafulhices e escaramuças e era muito dado à bebida. Com pouco mais de trinta anos casara com uma portuguesa nascida na Beira, chamada Efigénia, de quem não tinha filhos. Viviam em Lourenço Marques, mas Roberto andava quase sempre no mar, nos seus comércios. Próximo do Natal de 1880, o negociante zangou-se com os seus associados piratas, pois estes andavam-lhe a destruir os lucros, atacando os seus barcos em alto mar.

Já em 1881, o conflito agrava-se. Certo dia, Roberto Carvalho Lobo sai de casa armado, acompanhado por um grupo de colaboradores, aparentemente para desafiar os piratas. Três dias mais tarde, de noite, regressou a casa ferido e a sangrar, em grande sofrimento. Segundo o livro, o médico foi chamado de urgência, mas quando chegou já eram poucas as esperanças de salvar Roberto. Tinha os pulmões perfurados por balas e morreu às primeiras horas da madrugada do dia 28 de Janeiro, pondo fim a uma proveitosa carreira de contrabandista, pois, como o cronista relatava, vivia num belo palacete na zona sul da cidade, comprado com os ganhos dos seus lucrativos comércios». In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN 978-972-461-802-9.

Cortesia de OficinadoLivro/JDACT

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