C
«Luanda começou por ser um pobre cais sem majestade cujos armazéns ondulavam na humidade e no calor. A água assemelhava-se a creme solar turvo a luzir sobre pele suja e velha que cordas podres sulcavam de veias ao acaso. Negros desfocados no excesso de claridade trêmula acocoravam-se em pequenos grupos, observando-nos com a distracção intemporal, ao mesmo tempo aguda e cega, que se encontra nas fotografias que mostram os olhos voltados para dentro de John Coltrane quando sopra no saxofone a sua doce amargura de anjo bêbedo, e eu imaginava adiantes dos beiços grossos de cada um daqueles homens um trompete invisível, pronto a subir verticalmente no ar denso como as cordas dos faquires.
Pássaros
brancos e magros dissolviam-se nas palmeiras da baía ou nas casas de madeira da
Ilha ao longe, submersas de arbustos e de insectos, nas quais put… cansadas por
todos os homens sem ternura de Lisboa ali vinham beber os últimos champanhes de
gasosa, à maneira de baleias agonizantes ancoradas numa praia final, movendo de
tempos a tempos as ancas ao ritmo de pasodoble
de uma angústia indecifrável. Alferes pequeninos e de óculos, com ar
competente de estudantes-trabalhadores escrupulosos, pastorearam-nos aos saltinhos
na direcção de carruagens de gado que aguardavam num pontão coberto de detritos
e de limos, pontão da Cruz Quebrada, lembra-se, onde os esgotos morrem estendidos
aos pés da cidade, cães idosos que bolsam no capacho vómitos de lixo: em toda a
parte do mundo a que aportamos vamos assinalando a nossa presença aventureira através
de padrões manuelinos e de latas de conserva vazias, numa subtil combinação de escorbuto
heróico e de folha-de-flandres ferrugenta.
Sempre
apoiei que se erguesse em qualquer praça adequada do País um monumento ao
escarro, escarro-busto, escarro-marechal, escarro-poeta, escarro-homem de
Estado, escarro-equestre, algo que contribua, no futuro, para a perfeita
definição do perfeito português: gabava-se de fornicar e escarrava. Quanto à
filosofia, minha cara amiga, basta-nos o artigo de fundo do jornal, tão rico de
ideias como o deserto do Gobi de esquimós. De modo que, de cérebro exaurido por
raciocínios complicados, tomamos ampolas bebíveis às refeições a fim de conseguir
pensar.
Apetece-lhe
outro drambuie? Falar em
ampolas bebíveis dá-me sempre sede de líquidos xaroposos, amarelos, na
esperança insensata de descobrir, por intermédio deles e da suave e jovial
tontura que me proporcionam o segredo da vida e das pessoas, a quadratura do
círculo das emoções. Por vezes, ao sexto ou sétimo cálice, sinto que quase o
consigo, que estou prestes a consegui-lo, que as pinças canhestras do meu entendimento
vão colher, numa cautela cirúrgica, o delicado núcleo do mistério, mas logo de
imediato me afundo no júbilo informe de uma idiotia pastosa a que me arranco no
dia seguinte, a golpes de aspirina e sais de frutos, para tropeçar nos chinelos
a caminho do emprego, carregando comigo a opacidade irremediável da minha
existência, tão densa de um lodo de enigmas como pasta de açúcar na chávena
matinal.
Nunca
lhe aconteceu isto, sentir que está perto, que vai lograr num segundo a
aspiração adiada e eternamente perseguida anos a fio, o projecto que é ao mesmo
tempo o seu desespero e a sua esperança, estender a mão para agarrá-lo numa
alegria incontrolável e tombar, de súbito, de costas, de dedos cerrados sobre
nada, à medida que a aspiração ou o projecto se afastam tranquilamente de si no
trote miúdo da indiferença, sem a fitarem sequer?
Mas
talvez que você não conheça essa espécie horrorosa de derrota, talvez que a metafísica
constitua apenas para si um incómodo tão passageiro como uma comichão efémera,
talvez que a habite a jubilosa leveza dos botes ancorados, balouçando devagar
numa cadência autónoma de berços.
Uma
das coisas, aliás, que me encanta em si, permita-me que lho afirme, é a
inocência, não a inocência inocente das crianças e dos polícias, feita de uma
espécie de virgindade interior obtida à custa da credulidade ou da estupidez,
mas a inocência sábia, resignada, quase vegetal, diria, dos que aguardam dos outros
e deles próprios o mesmo que você e eu, aqui sentados, esperamos do empregado que
se dirige para nós chamado pelo meu braço no ar de bom aluno crónico: uma vaga atenção
distraída e o absoluto desdém pela magra gorjeta da nossa gratidão.
O
comboio cheio de malas e do receio tímido de estrangeiros em terra desconhecida,
cuja lusitanidade se nos afigurava tão problemática como a honestidade de um
ministro, rolou do cais para os musseques num gingar inchado de pombo». In António Lobo
Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.
Cortesia DomQuixote/JDACT
JDACT, António Lobo Antunes, Literatura, Cultura e Conhecimento, Escrita