Roberto Antunes Palma Lobo, 1881-1916
«Isso é muito interessante. Ao
longo do século XIX, a costa de Moçambique era regularmente atacada por
piratas. Tinham o seu covil na ilha de Madagáscar, e actuavam em todo o oceano
Índico, desde a Etiópia até à África do Sul. Eram de muitas nacionalidades.
Havia ingleses, franceses, holandeses, espanhóis, portugueses, mas também
muitos negros, indianos e até chineses e malaios. A maior parte eram bandidos
fugidos do seu país natal, e viviam em comunidades sem leis nem regras.
Atacavam as costas de África e os barcos de mercadorias, pilhando e saqueando,
para terror das populações e dos viajantes. A marinha inglesa, a alemã e até um
pouco a portuguesa tentavam dar-lhes luta, mas aquelas paragens não eram
prioritárias para a defesa de nenhum império, e só os abalos no comércio
marítimo é que provocavam alguma preocupação nos governos.
É perfeitamente possível, se ele
fosse um mercador, que tivesse entrado em confrontos com os piratas... Subitamente,
levantou-se e caminhou na direcção de uma estante. Há qualquer coisa escrita
sobre os piratas... Vi-o examinar as lombadas de alguns livros, mas depois
parou e olhou para o relógio. Vou ter de procurar à tarde, agora não tenho
muito tempo, tenho um almoço marcado...
Prometeu que me falaria, mas saí
da universidade sem entusiasmo. Não avançara nas minhas buscas. Regressei ao
hotel para almoçar e, depois de mais um banho refrescante na piscina, apanhei
um táxi para a Conservatória Central de Maputo, onde iria procurar as certidões
de nascimento do bisavô de Salvador, bem como as certidões de óbito da sua trisavó,
Efigénia Antunes Palma, e do seu trisavô, Roberto Carvalho Lobo, todas datadas
de 1881.
A Conservatória ficava num
edifício cinzento e sombrio, com uma arquitectura de linhas planas, em estilo
soviético, influenciado pela ligação do regime de Samora Machel ao comunismo
depois da independência de 1974. Nas paredes exteriores ainda se podiam ver alguns
buracos de balas, vestígios da guerra civil que assolara o país nas décadas de
80 e 90, e que colocara frente a frente a Frelimo e a Renamo.
Havia pouca gente nos corredores,
e descobri a sala dos registos através dos sinais nas paredes. Entrei e
dirigi-me ao balcão, onde algumas pessoas esperavam para ser atendidas. Quando
chegou a minha vez, uma funcionária negríssima, muito gorda e muito simpática, informou-me
que se chamava Fátima.
O que você deseja, meu filho,
perguntou. Anotou num pequeno papel branco o ano de 1881 e sumiu-se por uma
porta, não sem antes me dizer: Espere um pouco, meu filho. Quinze minutos
depois, dona Fátima voltou carregada com dois velhos livros de capa castanha,
que cheiravam a mofo e estavam cobertos de pó. Meu filho, há muitos anos que
ninguém lhes tocava. Por sorte não se perderam com a guerra. Ainda bem...
Abriu o primeiro livro à minha
frente. Agora, meu filho, você procura. Depois, se precisar, eu tiro umas
fotocópias... Dona Fátima afastou-se e foi atender outro homem, a quem também
chamou meu filho. Comecei a examinar o livro das certidões de óbito de
1881. A primeira a aparecer foi naturalmente a do trisavô de Salvador. Roberto
Carvalho Lobo falecera a 28 de Janeiro de 1881, e a causa do óbito assinalada
era ferimento mortal com arma de fogo. Nada era dito sobre as restantes
circunstâncias da morte.
Marquei a página e prossegui
folheando o livro. No dia 31 de Outubro, nove meses e três dias após o óbito do
marido, Efigénia morria também em casa, devido a complicações depois do
parto de um nascituro do sexo masculino. Nada de novo, portanto.
Passei ao segundo livro, o dos
nascimentos de 1881, e confirmei que, no mesmo dia em que a mãe morrera, 31 de
Outubro de 1881, nascera o bisavô Roberto Antunes Palma Lobo, o primeiro onde
os dois nomes, Palma e Lobo, se haviam juntado. Só que, se quanto ao nome da
mãe não havia novidade, era filho de Efigénia Antunes Palma, quanto ao nome do pai
havia uma surpresa. O que lá estava escrito era Kalanga. Assim, sem mais nem
menos. Embora o rapaz tivesse sido registado com o novo nome de família, Palma
Lobo, a indicação era a de que o seu pai biológico não era Roberto Carvalho
Lobo, mas sim um tal Kalanga, certamente um africano e personagem de quem nunca
ouvira falar». In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN
978-972-461-802-9.
Cortesia de OficinadoLivro/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Literatura, Amor,