A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo
«Foi
Sebastião Neto, o meu barbeiro, quem mo tirou. Quem me sabe dar notícias dele? Frei
Estêvão Sampaio... Lembro-me dele... deve estar a chegar. Quando foi a Lisboa
pelos sinais, falou com ele... Quiseram calçar-lhe o sapato. Com o peito do pé
tão alto não conseguiram. Então el-rei, com a maior das facilidades, o calçou.
Senhor,
disse dom Cristóvão, tendes de comer qualquer coisa de alimento. Deveis estar
fraco. Não, primo, não. Hoje é sexta-feira, não quero quebrar o voto de jejum. Com
graciosidade notava a diferença de vestimentas dos que o rodeavam: Diogo Manuel
veste à francesa, Sebastião Figueira à flamenga, meu primo dom Cristóvão à
italiana... e eu, meu Senhor, disse rindo dom João Castro, à veneziana...
É
verdade, é verdade. À portuguesa só vejo Pimentel e Neiva, que os irmãos vestem
seus hábitos e Francisco António... bordão e sombreiro como peregrino... vestes
que eu tantas vezes usei por esse mundo de Deus... Rogou então dom João Castro
a el-rei que, pois tinham a dita de terem vivo ali na sua presença o seu rei,
lhes fizesse Sua Alteza a graça de lhes contar alguma coisa de sua fadigosa peregrinação.
Não
me lembreis mágoas de meus trabalhos. Tempo virá de minha prosperidade e então,
com grande gosto, vos contarei o que agora me seria tão penoso se o renovasse
na memória. Dai-me antes vós notícias de Portugal. Que é feito, Dom João, de
vossos irmãos? Lembro-me de que vossos pais tiveram uma ninhada de filhos... Oh,
Senhor! Lembrar o que lá passa é coisa triste, um vazio de alma. Nada sei de
meus irmãos João, Fernando, Francisco... Manuel casou com Beatriz de Vilhena,
Violante com o conde de Odemira, Luís morreu em Alcácer... Mea culpa.
Dos
tios pouco sei. Fernando morreu abrasado na mina do baluarte de Dio, Miguel morreu
capitão em Malaca... E Cristóvão? Do tio Cristóvão não sei nada, nada... -
Sabeis alguma coisa de dona Catarina de Bragança? Quando, depois da morte do
cardeal vosso tio, respondeu o cónego Rodrigues, se apresentaram os herdeiros
ao trono de Portugal, a senhora duquesa era na primeira linha dos direitos... Eu
sei. Depois... contra a força dos exércitos do duque de Alba e a inércia no
interior do reino...
Era
doloroso recordar tais factos; e os senhores, para poupar el-rei, falavam-lhe
de coisas menores, dos paços da Ribeira, do Castelo, de Enxobregas, da torre de
São Gião... E ainda fazem em Lisboa a procissão de São Sebastião que se ordenou
pelo meu nascimento? Os mais não sabiam responder, mas o cónego acudia dizendo
que em algumas paróquias dirigidas por padres velhos ainda se fazia sem serem
molestados. Perguntava el-rei por om Teodósio, arcebispo de Évora, por dom
Fernando de Meneses, o Boca Aberta, por dom Luís de Noronha, por dona Maria de Alcáçova...
Ah!
Dona Maria!, exclamou dom João. Poderei ser um pouco irreverente convosco, meu
senhor? Aquele jovem rei orgulhoso, colérico, intratável, egoísta, que vós
conhecestes, morreu há muito tempo. Falai à vontade. Senhor, todos julgavam,
nesse tempo, que vos era indiferente senão incómodo o trato com mulheres. E
agora perguntais vós por tão formosa dona?... Eu sei. A evocação do seu
nome traz-nos ao teatro da memória o de seu pai, Pedro de Alcáçova, fidalgo de
vossa casa e de vossa confiança... Como mudam os tempos e as vontades! Com a
notícia da vossa morte, o cardeal vosso tio mandou-o prender... chorava ele a morte de dois filhos na batalha
de Alcácer... disse frei Lourenço… fê-lo julgar... Alcáçova, por ressabio e
aliciado pelo traidor Cristóvão de Moura, tomou o partido de Filipe segundo. Já
rei usurpador de Portugal, Filipe restituiu-lhe os bens, fê-lo conde de Idanha,
membro do conselho do vice-rei o cardeal Alberto...
Coisas
tristes me contais. Mas não é triste certamente, meu senhor, a lembrança
daquela belíssima criatura que era dona Maria de Alcáçova... Quereis lembrar-me
que ainda não respondi à vossa pergunta, não é? Se assim o quiserdes entender,
Senhor... É, sim, uma grata recordação... aqueles olhos, aqueles cabelos em
ondas de oiro sobre os ombros, o donaire do andar, do busto, das... Olhai,
amigos. Parecia eu indiferente? Nesse tempo considerava com raiva por que razão
não podia um rei casar senão com uns fantoches sem alma que lhe propunham os reis
e príncipes dos outros reinos da Europa... Que é feito dela, de dona Maria?
Casou, claro. Com dom Álvaro de Melo, senhor, neto de dom Rodrigo, conde de
Tentúgal e marquês de Ferreira.
Nisto
irrompeu porta dentro frei Estêvão de Sampaio e, logo após, Nuno da Costa. Senhores!,
dizia o frade com calor. Estamos rodeados de espiões. Que aconteceu? Esta gente
do embaixador de Castela que vejo em duas ou três faluas a rondar-vos a
casa?... Deu-se conta, de súbito, do estranho acatamento com que todos, de pé,
rodeavam aquele homem sentado com natural dignidade em frente da lareira. O
silêncio que mantiveram e aqueles olhos espetados a fitar-lhe a entrada
tempestuosa fê-lo compreender:
Meu
senhor!, arrojou-se frei Estêvão aos pés de el-rei. Então fostes vós, frei
Estêvão, que vos destes à canseira de ir a Portugal... dizia el-rei tomando-lhe
os braços para que se levantasse. Meu senhor, agora há urgência em vos tirar
daqui sem serdes reconhecido... Sugiro, disse dom João de Castro, que vós ou frei
Lourenço vá a um dos vossos mosteiros por um hábito em que Sua Alteza se possa
salvar pelo meio desses aleivosos que espreitam lá fora. Mais despachado, frei
Estêvão logo se prontificou: Pois Nosso Senhor tem guardado Vossa Alteza de
tantos perigos, vos há-de salvar de mais este.
Fez
menção Nuno da Costa, que se mantivera à porta, de o acompanhar, mas Marco
Túlio adiantou-se-lhe: Eu vou com frei Estêvão. Saíram os dois e, tomando a
barca que o frade havia fretado, desapareceram na noite». In Fernando Campos, A Ponte dos
suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,