«Assim, o que vemos e ouvimos acaba se assemelhando e até se igualando ao que não vimos nem ouvimos, é apenas uma questão de tempo, ou de que desapareçamos. E apesar de tudo não podemos deixar de encaminhar nossas vidas para o ouvir e o ver e o presenciar e o saber, com a convicção de que essas nossas vidas dependem de estarmos juntos um dia
ou de atendermos um telefonema,
ou de nos atrevermos, ou de cometermos um crime ou causarmos uma morte e
sabermos que foi assim. Às vezes tenho a sensação de que nada do que acontece
acontece, porque nada acontece sem interrupção, nada perdura nem persevera nem
se recorda incessantemente, e até a mais monótona e rotineira das existências
vai se anulando e negando a si mesma em sua aparente repetição até que nada
seja nada e ninguém seja ninguém que tenham sido antes, e a frágil roda do
mundo é empurrada por desmemoriados que ouvem e vêem e sabem o que não se diz
nem sucede nem é cognoscível nem comprovável. O que ocorre é idêntico ao que
não ocorre, o que descartamos ou deixamos passar idêntico ao que pegamos e
agarramos, o que experimentamos idêntico ao que não provamos, e no entanto
vai-nos a vida e vai-se-nos a vida em escolher, rejeitar e selecionar, em
traçar uma linha que separe essas coisas que são idênticas e faça de nossa
história uma história única que recordemos e possa ser contada. Dirigimos toda
a nossa inteligência, os nossos sentidos e o nosso afã à tarefa de discernir o
que será nivelado, ou já está, e por isso estamos cheios de arrependimentos e
de ocasiões perdidas, de confirmações e reafirmações e ocasiões aproveitadas,
quando o certo é que nada se afirma e tudo se vai perdendo. Ou talvez que nunca
tenha havido nada.
Talvez não tenha havido uma só
palavra entre Miriam e o homem durante todo o instante em que acreditei as
estar perdendo. Talvez tenham apenas se olhado, ou se abraçado de pé, calados,
ou se aproximado da cama para se despirem, ou talvez ela tenha se limitado a
descalçar-se, mostrando ao homem seus pés que teria lavado tão
conscienciosamente antes de sair de casa e agora estariam cansados e doloridos
(a planta de um deles suja pelo calçamento da rua). Não devem ter-se
esbofeteado nem se engalfinhado numa briga nem nada do género (quero dizer num
corpo-a-corpo), porque depois se arqueja fortemente e se grita ao fazê-lo, ou
então logo antes, senão depois. Talvez, como eu (mas eu o fazia por Luísa, e
entrava e saía), Miriam tenha ido ao banheiro e se trancado nele durante
aqueles minutos sem dizer nada, para se olhar no espelho, se arrumar e tentar apagar
do rosto as expressões acumuladas de ira, cansaço, decepção e alívio,
perguntando-se que outra seria mais adequada e benéfica para por fim encarar
aquele homem canhoto de braços peludos que teria achado engraçado ou divertido
ela ter esperado gratuitamente e ter me confundido com ele. Talvez o tenha
feito esperar um pouco, a porta fechada do banheiro, ou talvez sua intenção não
fosse essa, mas sim chorar às escondidas e contidamente sobre a tampa da
privada ou sobre o rebordo da banheira com as lentes de contacto tiradas, se é
que as usava, enxugando-se e ocultando-se a seus próprios olhos com uma toalha
até conseguir se acalmar, lavar o rosto, pintar-se e estar em condições de sair
de novo, dissimulando.
Eu tinha pressa de poder ouvir e,
para tanto, necessitava que Luísa voltasse a dormir, que deixasse de ser
corpórea e contínua para relegar-se e fazer-se distante, e necessitava estar
quieto para escutar através da parede do espelho ou pela sacada aberta, ou estereofonicamente
através de ambos. Falo, entendo e leio quatro línguas contando a minha, por
isso, suponho, me dediquei parcialmente a ser tradutor e intérprete em
congressos, reuniões e encontros, sobretudo políticos e às vezes o mais alto
nível (em duas oportunidades servi de intérprete a chefes de Estado; bem, um só
era chefe de governo). Suponho que por isso tenho a tendência (como tem Luísa,
que se dedica à mesma coisa, só que não compartilhamos exatamente as mesmas
línguas e ela está menos profissionalizada ou se dedica menos e, portanto, não
a tem tão acentuada) de querer compreender tudo o que se diz e que chega a meus ouvidos, tanto no trabalho
como fora dele, ainda que à distância, ainda que num dos inúmeros idiomas que
desconheço, ainda que em murmúrios indistinguíveis ou em sussurros
imperceptíveis, ainda que seja melhor eu não compreender e o que se diz não
seja dito para que eu ouça, ou mesmo seja dito justamente para que eu não capte».
In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN
972-708-247-5.
Cortesia de RelógioD’Água/JDACT
JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa,