26 de Março de 2021
«Foi nesse momento que, dentro
daquela primavera, dobrou ligeiramente os joelhos até achar uma abertura entre
verde e cor-de-rosa e, a partir desse mirante, avistou o motorista. Precisou de
dar alguns minutos, não queria aparecer logo, mas faltou-lhe paciência para grandes
esperas. Agradeceu em silêncio pela preferência matutina, por ter chegado cedo
ao circuito de manutenção, antes de sombras fugidias que o julgassem, e saiu do
loendro muito aprumado, como se viesse a caminhar no seguimento de uma andança
séria, enquanto esticava e encolhia os braços para a frente.
Sem explicações, entrou no
automóvel, sentou-se, bebeu de uma pequena garrafa de água, muito digno. Não
foi preciso dizer nada ao motorista, que regressou à segurança de saber para
onde iam em seguida. As ruas da vila apresentavam nova animação, motorizadas, gente
que aparecia à janela, cães a darem algum passeio, arrumados à sombra das
paredes.
Muito bem-disposto, passou o
portão da torrefação Camelo, sorriso aberto, dentição luminosa. A sexta-feira
sentia-se da forma subtil com que os dias da semana se distinguem uns dos
outros, o tempo roda. As pás giravam sobre os grãos de café, arrefeciam-nos
depois da torra, como se estivessem ali para fazer uma demonstração prática
dessa qualidade cíclica do tempo. Mas faltava vontade para teorias, o trabalho estava
já em plena acção, conforme se desejava. O encarregado largou logo qualquer
coisa que podia esperar e, lampeiro, avançou na direcção do senhor Rui, que
também seguia na direcção dele. O que diziam foi abafado pelo afã das máquinas,
falavam de assuntos que pouco interessariam a quem não partilhasse o brilho nos
olhos de um e de outro. O patrão, claro, tinha a sua história, as lembranças
que bastas vezes lhe cruzavam a ideia, em pequeno a aprender com o pai e com o tio,
e todas as suas idades, a decidir cada evolução daqueles armazéns, até ser um
homem de oitenta e nove anos, até ser aquela a sua empresa de estimação,
pequena entre outras empresas do grupo que, àquela mesma hora, eram preocupação
da sua descendência.
Depois de tanta veterania, algum
privilégio havia de lhe calhar. Conversaram com gosto, as notícias do café
vinham com optimismo. Estavam de costas voltadas para a montanha de sacas de
juta, as figuras dos dois homens recortadas nesse fundo. Não se tratava da
pilha de sacos que está logo à esquerda de quem entra, mas sim os outros, os
que estão um pouco mais à frente, à direita, café do Uganda, esse nome gravado
nos sacos: Uganda Natural Robusta Coffee. O fim da conversa foi assinalado por
alguns pequenos passos e, logo a seguir, duas ou três passadas rijas. A
propósito de algum detalhe, o senhor Rui disse uma graça a dois rapazes com
farda da fábrica, rapazes de cinquenta e tal anos, calças castanhas, camisola
vermelha, grená, cor de romã madura, boina na cabeça, óculos. Riram-se os dois,
como era próprio, um deles acrescentou um comentário conveniente e tratou-o por
senhor comendador.
Já na sala de embalagem, três
mulheres cumprimentaram-no com a deferência de uma sílaba pouco articulada,
talvez sem consoantes, a mesma que usavam em todas as manhãs que o senhor Rui
decidia entrar ali. À margem dessa etiqueta, a máquina repetia a sua música, a sua
sequência infinita, os pacotes chegavam em fila, altivos, novos e brilhantes,
deslumbrados, a verem o mundo pela primeira vez a partir de uma passadeira de
metal e, por fim, encontravam as mãos da mulher que os alinhava no interior de
uma caixa de papelão, prontos para se lançarem numa viagem que ainda
desconheciam. O senhor Rui cumprimentou as funcionárias também com uma sílaba,
mas afinada por outra nota». In José Luís Peixoto, Almoço de Domingo,
Quetzal Editores, 2021, ISBN 978-989-722-460-7.
Cortesia de QuetzalE/JDACT
JDACT, José Luís Peixoto, Literatura, Narrativa, Campo Maior, Rui Nabeiro, O Saber,