26 de Março de 2021
«Perguntou a uma delas pela mãe.
Recebeu resposta e agradecimento: senhor comendador. Tinha pressa de ir ter com
a mulher, de certeza que já estava bem acordada. Durante um par de minutos,
inclinou-se lá de cima, sobre a linha dos fornos que caramelizavam a alfarroba.
Havia trabalhadores a varrerem cinza, a carregarem caldeiras, cada um a cumprir
a sua função. Pouco faltaria para haver espanhóis a tomarem aquela mistura, no desayuno em casa ou encostados
à barra, como eles dizem. A torrefação
Camelo é uma máquina certa, nunca se cansava de repetir. Lembrou-se do bolo
seco na boca, a mastigá-lo, as pessoas vestidas com as melhores roupas, voltas
e voltas na boca, havia muito que essas pessoas não teriam conseguido imaginar.
Desembaciou os olhos. À sua frente ainda estavam os homens que trabalhavam nos
fornos, sorriu para todos eles.
Voltou à divisão dos sacos de
café, Uganda, das máquinas a torrar grãos, das pás a arrefecê-los.
Desbarrigado, indiferente ao fato de treino fora de moda, levava uma alegria
que era uma espécie de vaidade. No entanto, mesmo à beira da saída, o
encarregado quis dar-lhe uma palavra mais sóbria, falou do lugar onde o senhor
Rui tinha de ir nessa tarde.
A pensar no lugar onde tinha de
ir nessa tarde, aquela hora mudou de cor. O sorriso esmoreceu no rosto do
senhor Rui, senhor comendador.
Era um veio de acidez, podia
avançar por ele, isolá-lo do resto do sabor. Nesse exercício, conseguia
identificar um tipo de frescura que sugeria a imagem de maçãs verdes, como
quando descascava uma maçã noutro tempo e a lâmina da faca tinha riscos húmidos
e a carne da maçã sangrava pequenas gotas de sumo ácido. Mas, claro, reconhecia
também o doce, a sua preferência. Em alguma idade teria aprendido esse gosto, o
doce confortava-o. Todavia, o doce era complexo. Ali, aquecia-lhe ligeiramente
a boca com um morno que, sem inventar, lhe trazia a memória de bolachas da
infância, bolachas maria em dias assinalados.
Pousou a chávena no pires, o som
da loiça. A manhã entrava inteira por aquele momento, assentava nas paredes
brancas, pousava em toda a extensão da mesa, na toalha, no cesto do pão, nas
palavras que a mulher dizia. Ao olhar para a mulher, sentiu ainda o peso do
café sobre a língua, a espessura, sentiu também o seu nome bonito, Alice. O
líquido descia-lhe pela garganta, desaparecia, e o sabor do café evaporava lentamente
no interior da boca. Nesse processo, desenrolava novos sabores ou, talvez,
novas gradações do mesmo sabor, como tons de uma cor, castanho. Aquilo que a
mulher dizia apresentava uma delicadeza semelhante, estendia um enredo de
filhos, netos e bisnetos, que se cruzavam em múltiplas direcções, nomes que se
enredavam, Helena, Rui, Ivan, Rita, João Manuel, Marcos, nomes dispostos em
várias ordens; e também as crianças, os filhos do Rui, do Ivan, do Marcos; nomes
a formarem várias ligações, mapa de muitos caminhos, como se todos fossem
filhos, primos, sobrinhos, irmãos uns dos outros; e também as crianças, nunca
esquecidas, crianças de todos, futuros pais, futuros avós, futuros bisavós». In
José Luís Peixoto, Almoço de Domingo, Quetzal Editores, 2021, ISBN
978-989-722-460-7.
Cortesia de QuetzalE/JDACT
JDACT, José Luís Peixoto, Literatura, Narrativa, Campo Maior, Rui Nabeiro, O Saber,