A memória do esquecimento
«Lembrava‑se
apenas de que se esquecera... ou esquecera‑se de se lembrar. Que queria? Fraca
memória a sua!, suspirava. Os anos!... Fernanda tinha muitas vezes comigo este
desabafo e eu tomava‑lhe a preocupação, procurava colar‑lhe os restos das
lembranças, reconstituía‑as em mantas de retalhos, a tentar conservar o calor
das veias, a cor das faces, o brilho de um olhar, o tom de uma voz, o latejar
dos corações atingidos pelo gelo do tempo que chegou ao seu limite... Procurar
trabalhar a matéria perpetuável, no limiar do eterno... e transpô‑lo! Tomar o
esquecimento e recolocá‑lo na memória! Repor a memória no pedestal do
esquecimento, na cidade indiferente e distraída..., nas cidades, vilas, aldeias
e lugares distraídos e indiferentes por onde Silva Lisboa espalhou a rodos a
fantasia e o riso!... Antes que o verme pontual e infalível roa com suas
mandíbulas tenazes os últimos músculos putrefactíveis, ainda vivos, que o sal
do artista fez contrair num sorriso, vibrar e estalar numa gargalhada. Fixar as
recordações para ao menos essas se não transformarem em cinza!... Descuidados
que somos até da única certeza indesmentível! Dir‑se‑á não querermos acreditar
que nascemos mortais. Surpreende‑nos sempre desprevenidos a notícia da morte. A
carta, o telegrama que nos bate à porta quando se está longe. O telefone que
toca como tantas vezes rotineiras... Está? Fernando?, Sim. É para te dizer que
o avô...
O
gesto lento, interiorizado, de pousar no descanso o telefone. Então aquele foi
mesmo o último suspiro?... E aquele corpo vai arrefecer?... Do espantoso lance
teatral inesperadamente surgido no cemitério junto ao corpo exânime do actor,
ao fechar do caixão, quando o padre pronunciava as últimas encomendações,
lançava as derradeiras aspersões de água‑benta, traçava no ar a cruz do requiem e um coveiro avançava com a pá
de cal viva, far‑me‑iam relato mais tarde os parentes que assistiram. Estranha
realidade: nenhuma das versões é coincidente! Eu encontrava‑me no norte, para
lá das montanhas, desmaiava Setembro. Grande a azáfama do abrir das aulas. A
mulher, pesadona, a três meses do fim do tempo. Eu não possuía ainda carta nem
carro nesse tempo e a única possibilidade de me deslocar para ir assistir ao
enterro era aquele comboiinho de brincar que levava meio dia a chegar, depois
de fumegar e resfolegar as voltinhas gaiatamente apitadas, trepando a montes de
vento e lobos, espreitando telhados isolados, adormecidos em vales perdidos,
bordejando pegos e córregos de vertigem. Apareciam os pais a trazerem os filhos
para o internato, os professores vinham pelos horários e as cadernetas. Tudo eu
fazia ali, naquele colégio que era de brincar como o comboio. A única coisa
bonita que tinha era estar alcandorado nas velhas muralhas medievais bordadas
de lírios a olhar o rio largo e lento sob a ponte de Trajano. De resto achava‑me
praticamente só num barco a naufragar. Trinta alunos que mal davam para as
despesas, um sócio que fugira mal cheirara o descalabro, deixando‑me com as
suas dívidas. Director, prefeito, administrador, professor de tudo e mais
alguma coisa, português, francês, inglês, desenho, treinador de jogos, para
evitar ter de pagar a outros aquilo que eu não recebia. Vinte e seis anos de
idade..., a construção do meu futuro!».. In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa,
1987, Dl nº 83973.
Cortesia de Difel/JDACT
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