Cortesia de revelarlxcmlisboa
«Mostraria como hostilizado por todos, ele se salvara retemperando-se no amor. Isso lhe dava alegria aparente para tolerar o mundo que o cercava. Isso e o seu mundo interior que ia fazer viver; o povo, a ciência. Para tanto conseguir mostrá-lo-ia dispondo da camada nova, a qual amadurecera a seu lado, que ele conhecia toda, indo por isso amiúde buscar, fora do âmbito estreito da corte e do pessoal restrito da nobreza mais alta, as individualidades audazes dispersas pelo país com o auxílio de quem viria por fim a realizar as supremas maravilhas do seu reinado.
Despontava então, de facto, uma nova idade. Surgiam e começavam a acentuar-se, entre os que tomavam a frente no movimento, todas as características primordiais do chamado espírito moderno. As mesmas causas produziam efeitos idênticos entre povos e até entre individualidades as mais divergentes em suas condições e modo de ser. E assim que ao descrever e estudar a constante e sintomática inquietação que agitava o ânimo de D. João II, enquanto Príncipe, Oliveira Martins, para acentuar essa tão saliente semelhança, iria naturalmente socorrer-se a trechos frisantes da História de França, de Michelet, referentes a Luís XI, como. entre muitos, o seguinte:
- «On aurait pü l'appeller, comme on appellait cet Auguste de Thou, à qui Richelieu coupa la tête: Votre Inquietude.C'est le vrai nom de l'esprit moderne».
E de outro trecho mais adiante extractado ainda melhor ressaltaria a analogia procurada. Quem não cuidará, com efeito, ver o retrato de D. João II, lendo a seguinte descrição de Luís XI, ainda na casa e sob o governo de seu pai, quando Michelet o mostra:
- «s'ingéniant de mille sortes, subtilisant jour et nuit des nouvelles pensées», e acrescenta que «personne ne l'eut pris alors pour l'heritier dans la maison de ses pères. Il avait plutôt l'air d'une âme en peine, qui, à regret, hantait le vieux logis; loin d'être un revenant. Il semblait bien plutôt possede du demon de l'avenir».
D. João II por seu lado era um bilioso. E esse temperamento que explica a actividade incessante que o caracterizava. A intensidade das suas concepções e preferências, o exclusivismo com que se produziam, semelhando chamas devoradoras irrompendo de súbito, constituíam a feição essencial do seu carácter e explicam a um tempo as qualidades que o exaltam e os defeitos que lhe sombreiam a vida.
Os cortesãos do pai, havendo tido ocasião de o conhecer durante as três regências de 1475, 1477 e 1478, viam despontar nele o inimigo dos seus privilégios, disposto a esmagar impiedosamente uma organização social que tendia a absorver todas as forças vitais da nação em proveito exclusivo de uma classe. A hostilidade desta era pois segura. O rei D. Afonso afigurava-se ao filho e sucessor tal qual em uma carta ao Duque de Bragança o descreve D. Álvaro, irmão desse último, quando afirmava ser ele «tão pesado e tão curto em seu saber».
A Rainha, finalmente, a quem se ligara em tenra idade, nunca lhe inspirou, ao que parece, um sentimento absorvente de amor. Quando, porém, tal sentimento houvesse existido, de há muito lhe teriam posto termo a tragédia de Setúbal, e a afeição apaixonada que experimentava por D. Ana de Mendonça, uma e outra bastante, só por si, para extinguir entre os dois régios esposos, todo e qualquer sentimento afectuoso. De D. Leonor tivera um filho único, quando contava vinte anos apenas, e desse filho escreve Oliveira Martins, qualificando-o de «fruto enfezado de amores temporãos». Falando de D. João II e do príncipe D. Afonso dissera Popplau, o bem conhecido viajante alemão:
- «El-Rei es de media estatura, um poco más alto que yo. No cabe duda que entre todos los suyos és el más sabio y virtuoso. No passa de veinte y nueve anos de idade. Tenia en mi tiempo, un heredero de nueve anos de cara inglesa».
Cortesia de om
De todo este conjunto de circunstâncias se depreende pois bem como e que, dada a exuberância natural do seu temperamento e as condições especiais em que se encontrava no seio da família e da corte, D. João II viria sofregamente buscar alívio e conforto na afeição ardente que nutria por D. Ana de Mendonça. Desses amores, mais tarde extensivos ao filho que deles proviera, narra com efeito Miguel Leitão de Andrade na sua «Miscelânea» que o Rei vinha muitas vezes:
- «... estar neste bosque de Bom Jardim (Sernache) lograr seus gostos com aquela formosa dona Ana de Mendonça de quem houve o senhor D. George seu filho (que tanto desejou lhe sucedesse no reino, e dizem lhe escapuliu das mãos por bem leve ocasião) o qual nesta terra e sitio foi gerado e dele procedem os Ilustríssimos Duques de Aveiro que daqui têm suas raízes, como também os de Bragança por sua mãe Iria Gonçalves do Carvalhal».
Nascera D. Jorge em Abrantes no dia l2 de Agosto de 1481. Por D. Ana de Mendonça e por ele se conservou inalterável a afeição do Rei até os lampejos derradeiros da vida. A tanto se limitaram por fim as tempestades e os ímpetos da juventude, que em seus excessos haviam chegado, como Resende o narra, a cenas de violência e pugilato. O Príncipe, assim o refere aquele cronista:
- «... como homem mancebo que era, ainda que o esforço, saber e os cuidados eram de muito maior idade que a sua, todavia não podia negar o que a natureza dá, e aquilo a que geralmente os mancebos sao mais inclinados, e algumas horas ia de noite fora secreto, com uma ou duas pessoas, a folgar em coisas de amores. Aqueceu por duas vezes, uma indo com ele d. Diogo de Almeida Prior do Crato, e a outra d. Fernando Mascarenhas, seu capitão dos ginetes, e da guarda, pessoas de que ele sempre confiou muito, e estimou. Não sendo conhecido, saltarem com ele muitos homens armados em Lisboa junto de Santa Justa, cuidando que saltavam com outrem, e por se não dar a conhecer, jogaram as cutiladas com todos, e o fez tão valentemente, que foi muito falado nisso, sem saberem quem eram, e feriu muitos até lhe fugirem».
O carácter de D. João II, assim impetuoso e exuberante em começo, formara-se a pouco e pouco. O dever do Príncipe acabou por predominar sobre as paixões e os arrebatamentos. Já em tempo de Afonso V haviam os Reis Católicos afirmado, por vezes, em práticas «que mais caso faziarn da estúcia e vigilância do Principe D. João, que do acalorado e donadado esforço de El-Rei D. Afonso, seu pai». In O Príncipe Perfeito, Oliveira Martins, Lisboa, Guimarães e Editores, 1984.
Cortesia de Guimarães e Editores/JDACT